Crónica de Luísa Marinho: os risos das estátuas da cidade

Treze a rir uns dos outros, de Juan Muñoz, no Jardim da Cordoaria. (Fotografia de Ivan del Val/GI)
Era principalmente aos fins de semana que a minha mãe e a minha madrinha nos tiravam - a mim e às minhas irmãs - do confinamento de um pequeno apartamento no alto da Rua da Boavista para nos levarem a passear pelo jardim Teófilo Braga, na Praça da República.

Não me lembro de sentir aquilo como um passeio particularmente estimulante – ficava a poucos metros de casa e não tinha a dimensão para a aventura que uma criança deseja – não é um jardim com recantos, grutas, lagos, labirintos, nem sequer tem uma fonte ou pequenos esconderijos que poderiam servir para dar aquele pequeno desconforto necessário para alimentar histórias e brincar com a imaginação.

Na verdade, é um jardim despido, pontuado, com rigor, por meia dúzia de palmeiras, algumas tílias e carvalhos e vários canteiros relvados. Não é um jardim para subir às árvores – não sei se algum jardim urbano o é – e as brincadeiras estavam sempre limitadas a poucos metros de distância do banco onde as duas comadres se sentavam a vigiar-nos atenciosamente enquanto conversavam. Ao lado, bem visível pela dimensão, o quartel de Santo Ovídio imprimia ao cenário um autoritarismo sólido. Naquela altura, não pensaria com certeza sobre isso. Nem que seria ali que tinha tido o meu primeiro contacto com a mitologia clássica e ao mesmo tempo com dois escultores cujos nomes viria a aprender mais tarde: António Teixeira Lopes e Fernando de Sá. Do primeiro é Baco (1916), o busto do jovem deus do vinho, revelado aqui por um hedonista sorriso bêbado; uma mão segura uma taça, enquanto a outra aperta contra o peito um cacho de uvas e, parece-me, uma toga que quase cai. Está pousado num pedestal alto de granito, onde por vezes garrafas de vinho vazias são depositadas (provavelmente libações noctívagas de jovens embriagados).

A outra escultura, com o quartel ao fundo, condensa a história do rapto de Ganímedes (1898) – o momento em que Zeus, toldado pelo desejo, se transforma em águia para raptar o príncipe troiano. Que aqui tem o corpo lasso, resignado, e uma expressão que não exclui espanto. Na mão direita, segura um jarro (talvez referência ao futuro do jovem como escanção no Olimpo?). Era interessante como as duas estátuas funcionavam, se complementavam em pontos distantes do jardim. Por isso foi uma surpresa quando, em 2010, o Rapto de Ganímedes foi substituído por uma estátua da República, de Bruno Marques, voltada para o quartel.

Voltei a encontrar Ganímedes algumas semanas depois, no Jardim da Cordoaria, ofuscado pela sombra de frondosas árvores e situado ao lado de um pequeno parque infantil. Nada a fazer quanto a isso. Contornei a estátua, dirigi-me para outro lado do jardim, onde outras esculturas parecem ter ali mais sentido: as quatro bancadas na Alameda dos Plátanos, conjunto do artista contemporâneo Juan Muñoz: Treze a rir uns dos outros. Espalhados por essas bancadas, as personagens riem muito de olhos semicerrados, mesmo quando se avista o perigo da queda. Não é o mesmo sorriso embriagado de Baco. Aqui, está no limite do que é perene, humano. Porque só conseguimos fazer imortais os deuses.




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