Crónica de João Ferreira Oliveira: comer sozinho é uma arte

Sou «viciado» em fazer refeições a solo, admito, porventura uma herança de ter crescido como filho único. «Nunca confies num jornalista ou escritor que não seja capaz de almoçar ou jantar sozinho».

Disse-o na crónica anterior e repito. Coleciono frases de gente com quem me vou cruzando, na vida como no trabalho. Esta por exemplo: «Nunca confies num cozinheiro magro». Foi-me dita em França, há mais de dez anos, por um jovem chef, bem disposto, discurso ambicioso – porventura um tanto ao quanto filósfico, os leitores o dirão –, mas de trato humilde e dono de uma ementa com os pés assentes na terra. Era também senhor de uma beleza impressionante, um corpo escultural e olhos verde biológico, que, paradoxalmente, pareciam pairar como uma sombra sobre o seu trabalho.

Ficámos largos minutos à conversa, à mesa. «O que eu quero dizer é que quando queres muito uma coisa, quando queres ser o melhor, tens de treinar muito, pesquisar muito, provar muito, testar os teus limites, tens de sacrificar alguma coisa, seja a família, os teus amigos ou o peso ideal. Tens de passar muito tempo sozinho. Só depois de ultrapassada essa barreira podes tentar voltar a ser um tipo normal, equilibrado, e um profissional de eleição ao mesmo tempo. Eu ainda estou muito longe disso, ainda conservo a cara e o corpo que deus me deu. Talvez daqui a uns anos a minha imagem e, sobretudo, a minha cozinha sejam diferentes», concluiu.

Vem-me a conversa à memória, sentado à mesa de uma churrasqueira, num lugar com vista direta para o fogão onde o cozinheiro, um homem enorme, gigante, obeso, trata diligentemente do meu frango. «Bem passado, por favor», repito, alto e bom som, guardando para mim um desabafo que não ouso verbalizar – escrever sim, que nos jornais, é sabido, ninguém nos ouve, muito menos nos ataca. «Como é possível que um cozinheiro se tenha deixado chegar a este estado?»

É feio fazer este tipo de juízos, eu sei, se bem que tenho a certeza de que também aquele homem discorre em silêncio sobre mim. É sexta-feira à noite, a casa está cheia, de casais, de grupos, de estrangeiros. Sou o único solitário – será circunstacial, até porque, mesmo neste país provinciano por defeito, geografia e natureza, há muito que se sai à noite sozinho sem qualquer medo ou prconceito – e aproveito o momento não só para colocar a leitura em dia, mas também para ir escrevinhando esta crónica, perante o olhar desconfiado do homem, porventura imaginando-me um inspetor da ASAE. Ou isso ou apenas um triste, desamparado e, quem sabe?, perigoso solitário. «Está à espera de mais alguém?», pergunta-me, uma vez, e depois outra, já com a comida a chegar à mesa. «Sempre não vai chegar mais ninguém, pois não?»

Sou «viciado» em fazer refeições a solo, admito, porventura uma herança de ter crescido como filho único, seja para ler, escrever, observar ou apenas… comer. «Nunca confies num jornalista ou escritor que não seja capaz de almoçar ou jantar sozinho», escrevo à laia de aforismo, quem sabe o título para a crónica. A certeza de que, de tempos a tempos, e independentemente da profissão, não há melhor sítio do que uma mesa e uma cadeira vazia para ver o mundo. E a nós próprios.

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