Crónica de Pedro Ivo Carvalho: Rute, a mulher da janela que tinha saudades do passado

(Foto: Felix Mittermeier/PxHere)
Um dos aspetos menos notados na galopante gentrificação dos grandes polos urbanos é o desaparecimento das senhoras que vivem à janela, de cotovelos apoiados nos parapeitos castigados pelo crueza do sol. A mera observação permite-nos suspeitar que também aqui tem havido uma evolução na norma.

Vir à janela, há umas décadas, significava conversar com alguém, pedir um favor, lançar um bom dia. É curioso verificar, nessa mudança natural da paisagem urbana, que as mulheres que pairam à janela não foram estando sozinhas. Dividiram a nesga com o cão ou o gato, algumas aguentavam de pé porque não havia, não há, nelas varizes, outras acomodavam a idade num banquinho com uma almofada dobrada em dois para tornar mais fofa a espera. Não se sabe de quê. Nem de quem. Horas, horas e horas numa bancada com vistas, tantas e tantas vezes, para uma casa pichada, uma parede encardida, uma paragem de autocarro. Ou, pior (ou melhor), tantas e tantas vezes com vistas para outra janela habitada por outra senhora. Não vejo homens à janela como a mesma devoção, e os que vejo estão sempre agarrados a um cigarro. Os mais obstinados, e que têm varandim, arriscam sentar-se numa cadeirinha. Nalguns casos há uma mesa. Mas não é a mesma coisa. Não há parapeito. Nem cotovelos estacionados.

Em miúdo, tive uma vizinha que gastava os minutos do dia entalada entre as cortinas da sala de estar, olhos apontados à rotina dos outros. Ela era, em certa medida, uma guardiã informal. Sinistra, é certo, porque quando a víamos de corpo inteiro no passeio não perdia a compostura nem o silêncio. Foi sempre assim que a imaginei, uma mulher ruim, avessa à humanidade. Dava-me um certo jeito que assim fosse, porque nessa altura andava imerso nos filmes de Hitchcock que, se a memória não me atraiçoa, passaram durante algum tempo na RTP2. Foram alguns anos nesta relação. Eu cá em baixo, a olhá-la, insuspeito. Ela lá em cima, a devolver-me frieza. Não nego que, ocasionalmente, eu próprio me abeirava da janela para me certificar de que ela ainda lá estava. E estava sempre. Ela estava sempre. “Não ligues à bruxa”. Eu ria-me. Para mim ela era uma noiva negra. Mal desconfiava. Dela só soube o primeiro nome. Rute. Morreu já eu não morava naquela rua nem naquela janela. Descobri depois que o marido a deixara subitamente. Esfumou-se porta fora. Partiu sem levar nada. Ficou a roupa, o cheiro. A saudade. A janela de Rute era uma triste viagem incessante a um passado do nunca mais.




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