Crónica de Paula Ferreira: teatro num local improvável

Teatro (Fotografia de Cottonbro Studio/Pexels)
Põem a máscara e assumem, por momentos, outras vidas. São atores amadores, com exíguos apoios, ensaiam depois do trabalho e levam o teatro onde dificilmente chegaria.

Têm vidas normais, as mais diversas profissões. Uns são funcionários públicos, outros trolhas, pintores, picheleiros, mecânicos de automóveis, professores, reformados. Certas noites, põem a máscara e todos são atores. Tímidos, outros extrovertidos, amam o palco, agrada-lhes a luz projetada na personagem a que dão fugaz vida. Os aplausos, no final, reparam o nervoso, o medo cénico que quase os paralisa antes de subir o pano. Esta poderá ser a realidade de milhares de pessoas que, por amor ao teatro, o levam a locais onde, provavelmente, nunca chegaria.

E de repente, por este país fora, o teatro amador devolve a alegria a tanta gente. Os apoios a estes grupos, de um modo geral, são simbólicos ou inexistentes. Sobem ao palco graças ao entusiasmo de uns poucos, à forma contagiante como transmitem a fantasia aos outros.

Uma destas noites, enfrentei a inércia, o comodismo e o frio. Troquei o conforto do sofá pelas cadeiras do centro paroquial da aldeia onde vivo. Pelas redes sociais, havia chegado anúncio de noite de teatro, uma parceria do Cenárvore – grupo local, criado e dinamizado com grande dedicação pelo professor Francisco Reis – e do grupo Alta-Cena, de freguesia vizinha.

Inconscientemente, terei ido a acreditar na possibilidade da reedição de uma outra noite, há vários anos, quando assisti a uma comédia levada à cena pelo grupo da terra. Saí, nessa noite, dando o tempo por muito bem empregado, depois de muitas e genuínas gargalhadas. Devia saber, a água não passa duas vezes sob a mesma ponte… Mesmo assim, não foi tempo perdido.

Enquanto em palco se sucediam os sketches, mais ou menos brejeiros, e na plateia dezenas de espectadores respondiam ao repto dos atores batendo palmas com vigor, interrogava-me sobre o que movia aquelas pessoas. Uns jovens, outros já adiantados na idade, a vestir a pele de outrem, assumindo, por breves instantes, outras identidades, sem que disso façam vida.

O padre, o polícia, o casal improvável, o casal trans, o presidente da junta, o sem-abrigo, a beata e a boazona, com que povoaram o palco, ensaiaram noites seguidas, durante semanas, pelo simples prazer do teatro. No final, dei comigo a pensar no fascínio provocado pela descoberta das roupas de um grupo de teatro amador, que funcionava num barracão de minha casa, nos anos 60 do outro século. Essas roupas e outros adereços estavam abandonados numa tulha, também ela tocada pelo abandono, onde se guardavam cereais. A descoberta fez-me criar histórias imaginárias sem fim – será essa, com certeza, a magia do teatro.




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