Crónica de Nuno Cardoso: Quantas histórias tem uma omelete?

(Fotografia: Pixabay)
Comida e memória andam de mãos dadas. Alimentam-se uma da outra. E se uma autobiografia não se contasse cronologicamente, mas sim por sabores?

Nunca nutri especial apreço pelas resoluções de Ano Novo – talvez porque nunca tenha visto grande sucesso naquelas a que me propus, mas isso é outra história -, muito por virem a reboque da obrigatoriedade de uma data específica e cliché. Mil vezes deixar de fumar a um sete de maio ou a um dezanove de outubro do que à meia-noite do um de janeiro. Nisto sou do contra, com gosto.

Mas este ano, uma das promessas que fiz a mim mesmo foi a de arranjar mais tempo para ler, colocar em dia os livros que se vão empilhando na prateleira à espera de serem folheados. A minha costela pragmática entrou logo em prática: estipulei ler um livro novo por quinzena. Não o tenho executado com excelência militar – a vida é mesmo assim e está tudo bem – mas tenho cumprido a maior parte das vezes.

Um dos últimos que mais me prazer deu “roubei-o” da casa de um amigo – em minha defesa, eu sou daqueles que devolvo efetivamente os livros. Chama-se “Omelette” e é uma autobiografia de Jessie Ware, cantora britânica e vigorosa foodie quando não está em cima de um palco, que não está escrita de forma cronológica, mas onde cada capítulo se foca num prato ou ingrediente, e nas memórias e episódios vividos em torno deste.

Por exemplo, a própria omelete da sua mãe, recurso obrigatório de conforto para “momentos de crise”, que a matriarca confecionou no momento em que o pai de Ware saía de vez de casa. Ou o chocolate, que a então jovem cantora comprava todas as semanas, logo depois da sessão com o psicólogo, “para a guiar de volta ao mundo real”. Ou o polvo grelhado que a transporta para as férias de família anuais na ilha grega de Skopelos. E por aí fora.

Deixou-me a pensar em como seria tão fácil fazer este exercício – o de juntar um leque de memórias em fases diferentes da vida à volta de um só prato ou produto. Prova de como a comida e a memória estão intrinsecamente e afetivamente ligadas. Determinado prato ou sabor transporta-nos para um determinado local, ano, estação, estado de espírito. Com uma beleza democrática à mistura – qualquer pessoa consegue fazer este exercício, sem precisarmos de ir aos óbvios: o bacalhau no Natal, os folares na Páscoa, etc.

Se esta vida fosse um filme, o que comemos e partilhamos à mesa teria muito mais de argumento do que de cenário. É por isso que uma mariscada me leva sempre para passeios à beira-mar na Ericeira, em família; as tigeladas e as papas de carolo me fazem recordar dos infinitos verões de férias entre duas aldeias beirãs; as cataplanas fazem-me viajar para a costa mais a sul; uma boa francesinha traz-me risadas e flashes de noites longas com os amigos que estão na bela Invicta; e uma simples sopa de legumes verdes e triturados, a mesma que fiz várias vezes para a avó Piedade, no último ano de vida, será sempre mais do que uma sopa de legumes verdes e triturados.




Outros Artigos





Outros Conteúdos GMG





Send this to friend