Crónica de Filomena Abreu: As árvores continuam generosas

(Foto: PxHere)
Estendia os braços às árvores e elas nunca o deixaram de mãos vazias. Davam-lhe laranjas, limões, ameixas, maçãs e peras. Mas a grande satisfação dele eram as videiras. “É pomada da boa”, dizia. E nunca ninguém fez cara do contrário.

Foi em Monsul, Braga, que vivemos a infância como uma aventura. Nunca faltaram bichos para dissecar e de seguida enterrar, com todo o cerimonial. Cada tarefa responsável que os adultos nos dessem era imediatamente convertida num jogo. E se nos mandassem apanhar amoras, maracujás ou morangos, só metade da colheita chegava à mesa. Habituámo-nos a gostar da terra e a respeitá-la, como ao homem que tanto a amava e nos amava. Aprendemos a apanhar nozes no lusco-fusco do outono. E a descobrir os ouriços das castanhas com os pés. No fim, quem tivesse mais no balde ganhava. E nós, pequenos, ganhávamos sempre, já não sei o quê. Sei que na sua terra, e à sua maneira, o Kiki nos ofereceu a fórmula da felicidade.

Nos últimos dias, do último verão, lá estava ele, a estender os braços às árvores. À nossa chegada, havia sempre muito mimo. Depois, ficávamos a conversar junto à piscina. Ele podava as laranjeiras e nós éramos como borboletas à sua volta. O Manecas contava histórias. E a Eduarda sorria. Sempre foi a flor mais bonita do jardim. E ríamos das nossas malandrices. Anos antes, a poucos metros dali, o mano e eu espreitávamos atrás do tanque. A mãe, de bata de xadrez azul, tinha as mãos na anca. O Kiki, sempre de negro, tinha as mangas arregaçadas. Ambos fitavam o chão. As ramas das cenouras, murchas, tapavam pequenos buracos, onde devia haver tubérculos. Aqueles que comemos gulosos e que esperávamos que ninguém descobrisse. Era sempre assim. Nunca procurávamos fazer asneiras. Elas é que nos encontravam a nós. As baratas que nadavam na piscina chamavam-nos quando estávamos, quietos, a soprar dentes de leão. As cobras queriam conversa quando, concentrados, procurávamos trevos de quatro folhas.

Passou muito tempo e essas lembranças ainda suspiram nas nossas memórias. Hoje os papéis são outros. No jardim do nosso castelo, em Braga, são a Eduarda e o Hugo que estendem os braços às árvores. Recebem limões, dióspiros e ameixas. O Manecas e eu achamos que devem estar a fazer a coisa certa, porque vemos sempre duas borboletas por ali.




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