Crónica de Dora Mota: Comer conceitos em vez de comida

(Fotografia: Igor Martins/GI)
É muito mais fácil criar um conceito do que fazer comida bem feita ou assumir aquilo que se é. Esta crónica é dedicada aos restaurantes sem artifícios onde gostamos de ir todos os dias.

O Porto está cheio de restaurantes que servem conceitos antes de servirem comida. De há uns tempos para cá, sabemos o conceito antes de sabermos o que ali se come, ou até o preço. Alguns conceitos têm o nome de práticas que existem há muito tempo na restauração e na culinária, como o “surf&turf” ou a fusão. Temos o conceito de partilha, o conceito de sentir-se em casa, o conceito da exclusividade, o conceito sustentável, o conceito de tasca contemporânea, entre muitos outros, que estão sempre a aparecer.

O problema dos restaurantes se apresentarem pelo conceito é que quando chega a comida, às vezes não sabemos se nos devemos queixar dela ou do conceito. Já comi conceitos em muitos lugares. Uma vez, comi um conceito que consistia numas batatas demasiado cozidas carregadas de um molho granulado e tão grosseiramente picante que não se podia perceber ao que sabia mais nada depois disso.

Também já comi um conceito que era um cilindro branco com um bocadinho de molho perdido num enorme e gordo prato de cerâmica artística (os conceitos servem-se muitas vezes em louça fina) que se chamava falsa vieira. Era o talo de um cogumelo que custava quatro euros, numa carta que se dizia “de partilha”. Eu e as minhas amigas partilhamos, de facto, a indignação da conta alta e a vontade de ir comer a outro lado qualquer. Já comi conceitos em vez de comida em restaurantes que me faziam feliz até decidirem ficar mais modernos, a combinar com o andamento da cidade. Mudam o conceito, a sala fica estranha e os bolinhos de bacalhau passam a chegar ainda congelados por dentro.

O conceito aparece quando menos se espera, como o tofu numa casa de francesinhas. Quando isso ocorre, estremeço e temo o pior, porque o conceito é contagioso. Outra das características do conceito é ser fácil de fazer. É muito mais fácil criar um conceito do que fazer comida bem feita, ou assumir aquilo que se é. Um restaurante de comida tradicional e simples neste mundo que quer estar sempre a atirar lantejoulas ao ar rapidamente entra na categoria de tasca. As tascas são lugares bons e cheios de alegrias para as almas simples; as almas simples e alegres pertencem às melhores pessoas; todavia ser tasca não é, muitas vezes, o rótulo que um restaurante familiar deseja. É nessa insegurança que o conceito atua.

Surgem assim “tascas contemporâneas” ou “comida familiar de autor” no lugar de restaurantes normais. O conceito é ardiloso, mas tem um leque decorativo algo previsível: consiste em painéis de ardósia a dizer “eat, drink, love”, bolbos de lâmpadas a pender no teto, falso mosaico hidráulico, uma iluminação amarelada e fraca que torna tudo acastanhado e não nos deixa ver bem o que estamos a comer. O que podemos ter a certeza é que vamos pagar mais do que aquilo que o conceito no nosso prato merece. (Nota: há bons restaurantes com bolbos de lâmpadas, todavia…).

Esta crónica é dedicada aos restaurantes autênticos, que são o que são sem artifícios, aqueles que (ainda) fazem do Porto uma cidade onde se come bem e com alegria. Bem hajam.




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