Crónica de Dora Mota: A terra é como a nossa família

(Foto: Pedro Correia/GI)
Pode-se explicar porque é que gostamos da nossa terra da mesma forma que se explica gostarmos da nossa família – com as suas virtudes, defeitos e histórias. Porque quando olhamos para as pessoas de quem gostamos, vemos um conjunto vivo, superior à soma das suas partes, do qual fazemos parte. É assim que eu olho para Valongo, que não é a terra onde nasci nem tenho raízes familiares, mas é a terra onde, com alguns intervalos pelo meio, tenho passado a maior parte da minha vida. E é a terra de onde escolhi ser.

Eu gosto de Valongo como de uma pessoa da família – e às vezes é difícil que os meus amigos urbaníssimos do Porto entendam que eu me sinto em casa nesta cidade onde “não se passa nada”. E que bom que assim seja, que Valongo mude tão lentamente que pareça pouco mudar. Nem devia chamar-se cidade, com a sua autêntica alma de vila (cidade verdadeira, admitamos, é só Ermesinde).

Gosto de muitas coisas em Valongo, nomeadamente da força comunitária e dos robustos traços de identidade. As pessoas tratam-se por “mor” e por “meu rei”. Há um orgulho firme em ser o reino do pão e dos biscoitos, das serras (ainda que maltratadas pela cultura do eucalipto), dos mineiros de Campo e dos bugios de Sobrado, das histórias de mouros e romanos, dos montes cheios de ouro na barriga, desse outro ouro – o negro – que é a lousa.

Gosto de Valongo, apesar de tudo. Apesar da incoerência urbanística que nos faz sentir que alguém se esqueceu de acabar a cidade e deixou tantos lugares sem saída e lugares que parecem estar à espera de obras. Talvez o mesmo gigante distraído que traçou uma autoestrada no centro do miolo urbano há muitos anos. Ou que imaginou uma outra cidade supermoderna na encosta poente da serra, sonho esse do qual sobrou um centro comercial e uma biblioteca aos quais se acede por um estreito túnel de via única… e numa estrada sem margens e sem remate.

Valongo às vezes é mais feia do que bonita, mas cheira a biscoitos na rua central. E tem histórias de criaturas marinhas e lendas de mouros e cristãos à luta. E o nosso São João de rija festa popular é tão incrível quanto desconhecido nas terras ao lado. Melhor assim, ó rei, mais sobra para nós.




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