Crónica de Dora Mota: a comida é pontuação do tempo

(Fotografia: Rui Manuel Fonseca/GI)
Neste ano tornado amorfo, desritualizado e apático, a minha mãe perseverou na sua missão de manter as comidas de cada festa na nossa mesa, como guardiã da cultura.

Outro dia, a minha mãe deixou-me o almoço no muro do quintal, em dois volumes bem embrulhados em toalhas de pano. Num e outro, uma assadeira com carne e batatas assadas e um tacho de arroz. Se um dia chegar ao céu, sei que me vai cheirar àquilo que emanava das toalhas grossas: um aroma ténue que anuncia algo de grandioso, que nos atingirá com força na parte do cérebro onde arquivamos o prazer. Estou muito certa de que cheiros, sabores e visões de comida preenchem essa parte do cérebro quase toda.

Dizia que, caso chegue à porta do céu, vai ser assim: um aroma brando, quente e doce, a anunciar um arrebatamento de vida eterna – fatias de carne e batatas douradas, num molho castanho e brilhante, a recender a ervas e louro; e um arroz perfeito. Nada a mais, nada a menos, uma alquimia de sabores perfeita, irrepetível, a não ser pelas mesmas mãos. Neste ano de confinamento, todos sentimos muito a falta da comida da minha mãe, apesar destas boas surpresas que nos foi fazendo. Mas mais do que isso, percebemos muito claramente que a minha mãe é mais do que uma cozinheira talentosa, porque ela é a guardiã da nossa cultura de comer.

Graças a ela, picamos o ponto em todas as comidas das datas festivas. Neste tempo tornado amorfo, desritualizado e apático, a minha mãe perseverou na sua missão de nos assinalar que isso não se admite. Por isso, mesmo à distância, houve lições de temperar cabrito pelo telefone, dicas para demolhar bacalhau e descrições detalhadas sobre como deixar o arroz no ponto. Houve inquéritos à nossa despensa e ao nosso fogão, porque não fazer a comida das festas é uma forma de preguiça – e quando ela não puder, como é que vai ser? Vamos ter uma mesa de consoada vazia? Custa muito fazer umas rabanadas, uma aletria?

A minha mãe está certa porque comida também é cultura. A comida de todos os dias, a comida das festas, a comida dos aproveitamentos e a comida de cada estação. Este ano em que não passámos juntos o Natal, nem saímos para ver o formidável cortejo popular de Carnaval da nossa aldeia, tivemos aniversários vazios e não celebramos a Páscoa numa mesa cheia de gente, o esforço da minha mãe para preservar os rituais do gosto deu forma, cheiro e sabor aos dias festivos, que são a pontuação dos meses e das estações.

A comida dela (ou as instruções ao telefone) foram o sal e o azeite; o alho e a folha de louro; o açúcar e a canela; e a raspa de laranja do nosso ano. E uma lição para as vezes que nos queixamos da trabalheira que dava fazer a comida das festas. Fica descansada, mãezinha, que nós damos conta do recado.




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