Crónica de Carina Fonseca: o tempo dos introvertidos

Fotografia: Fernando Marques/GI
Nos últimos dias tenho visto memes e publicações bem dispostas que podem ser resumidas da seguinte maneira: quarentena? Os introvertidos passaram a vida a treinar para ela. Haja humor para lidar com mais esta crise. Haja humor e cuidado - connosco e com os outros.

Em todas as famílias há histórias repetidas até à exaustão, num misto de ternura e riso. As que me dizem respeito têm, normalmente, a ver com o meu excesso de preocupação ou aparente sossego (contraditório, pois é). Ainda hoje ouço relatos de como se esqueciam da minha presença na praia, perdida que ficava entre livros, quiçá apenas a brincar com a areia.

Certa vez, num passeio de domingo, torrei a paciência das minhas primas mais velhas porque “queria ir para casa estudar Meio Físico” – e andava só na escola primária. Mais tarde, fui com uma delas de fim de semana e só se lembrou de mim à hora de jantar. Calma, não houve qualquer negligência. Eu era apenas uma adolescente calada que, por dentro, andava em grandes aventuras fantasiosas.

Por tudo isto, sei que, se ficasse de quarentena, não teria dificuldade em passar o tempo. Há livros para ler, gavetas por arrumar, pequenas tarefas que vão sendo adiadas, algumas tão comezinhas como organizar o caderno de receitas, manuscrito e com recortes, à antiga. Um tempo de introspeção é sempre bem-vindo, pelo menos quando se é introvertido, palavra que tem um peso desnecessário (desmistifique-se isso lendo, por exemplo, a obra de Susan Cain “Silêncio – o poder dos introvertidos num mundo que não para de falar”.)

Nos últimos dias tenho visto memes e publicações bem dispostas que podem ser resumidas assim: quarentena? Os introvertidos passaram a vida a treinar para ela. Um amigo escreveu numa rede social, em tom de brincadeira, que a ameaça do novo coronavírus lhe permitia conservar o seu estilo de vida habitual: fugir de multidões e manter as pessoas à distância de quatro metros. Haja humor para lidar com mais esta crise. Haja humor, calma e cuidado, connosco e com os outros. Neste momento delicado, cabe a cada um ser socialmente responsável, adotando gestos de higiene e civilidade básicos e recolhendo o mais possível à sua concha.

Quando o assunto Covid-19 começou a tornar-se realmente sério nas nossas cabeças, outro amigo, preocupado por trabalhar a recibos verdes e ver os seus espetáculos cancelados, disse-me ao telefone: isto pode ser bom para pensar. Achei esse comentário de uma grande sabedoria. Habituámo-nos a andar por aí numa azáfama que impede a reflexão. Parar não é hipótese, sob pena de haver desmoronamentos interiores. Mas, tal como arrumar a casa é desejável e nos deixa com a sensação de respirar melhor, olhar para dentro também pode ser importante para escolher quem queremos ser, como e onde. E, quando o medo passar, poderemos fazer a festa, sair para a rua a espalhar abraços.

Por agora, há que transferir os gestos de carinho para a esfera do impalpável. Podemos começar por mandar mensagens como esta que recebi: “Faz uma pausa e vai apanhar um pouco de sol”. (Assim fiz, no pátio de casa.) Ser introvertido, ou estar de quarentena, não significa afastarmo-nos dos outros. Pelo contrário: é querer-lhes bem, e a nós equilibrados para lhes dar o amor que merecem.




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