Crónica de Carina Fonseca: Na minha cabeça ainda tenho férias grandes

Fotografia: Maria João Gala/GI
Certos sabores são memória pura de um tempo mais limpo. Regressa-se à infância com a sensação de que está tudo no seu lugar - pelo menos enquanto se rapa o arroz-doce do tacho.

Pão é das melhores coisas da vida. Mas nunca mais comi um tão bom como aquele que o meu tio preparava, na praia de Pedrógão, onde passei grande parte dos verões na infância. Era um mês inteiro de alegre repetição: ser peixe de mar, até a pele dos dedos ficar engelhada; comprar livros de banda desenhada no quiosque, devorados em menos tempo do que demorava a fazer a digestão (nem pensar em ir para a água antes de passadas duas ou três horas, condicionamento que, de algum modo, me ficou); subir tão alto nos baloiços que o Mundo parecia outro; jogar raquetas (tinha de ter começado em algum lado a paixão pelo badminton); abraçar a cadela Boneca (também vem de longe o amor pelos animais); e, claro, devorar o pão com fiambre e manteiga que o meu tio ia buscar a casa, à hora do lanche, para que outros conservassem os pés no areal ininterruptamente.

Os dias eram enormes, elásticos, e aquela rotina anual uma delícia – algo que só soube mais tarde. Na altura, estava focada em ser criança, participar nas construções na areia, cobiçar as bolas com brinquedos e outros brindes que saíam das máquinas, colorir livros, comer talhadas de melão cortadas por terceiros – em suma, desfrutar do momento, o que se tornou cada vez mais difícil com a imposição de crescer. Ser adulto, desconfio, é estar constantemente a pensar no passado ou no futuro, quase sempre absorvido por tarefas. Umas vezes, lá se consegue boiar, em doce abandono, o corpo leve, leve; mais frequente é a luta por manter o pé, pensando: como entrámos nestas águas? E como saímos? Até que a maré vaza. E depois volta a encher. Vaivém contínuo. Mais vale aprender a ver beleza nessa inconstância, acompanhar a maior ou menor ondulação.

Lembro-me de ter como certo que as pessoas com 30 anos já eram grandes – como as férias. Acontece a todos, presumo. Isso e acreditar que nessa idade já se tem a vida naturalmente ordenada. Agora sei que não é assim e, sempre que tenho oportunidade, aceito ser pequena outra vez. Quando volto ao arroz-doce da minha mãe, por exemplo. Tem a dose certa de limão, não é demasiado solto nem demasiado compacto, e é enfeitado com o seu traço único de canela. Num restaurante nunca o arroz-doce teve sabor sequer parecido, além de que não posso rapar o tacho em que foi feito, que é a melhor maneira de comê-lo – ainda quente e, de preferência, com uma dose generosa no fundo. São umas férias grandes dentro da cabeça. Uma pausa no estudo e no trabalho, uma pausa na adultez.

Acontece em mais ocasiões, felizmente. Uma cama de rede, um gelado, uma moeda encontrada no chão e outras coisas pequenas devolvem-me ao entusiasmo original: aqui está, aproveita. O meu tio, quando me encontra, às vezes ainda diz: «Olha o cachopito maior!» (por oposição a «cachopito mais pequeno», a minha irmã). E fico outra vez a miúda que andava ao banho quase até ser noite e comia pão com fiambre e manteiga num contexto específico, ignorando que, uma vez crescida, não haveria como fazer outro igual. Quanto mais tempo passa, mais nítido me parece: pela comida viaja-se até aos melhores dias da vida – e até às melhores pessoas.

 

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