Crónica de Carina Fonseca: companheiros de viagem

Espaço fluvial de lazer Maria Delegada, em Penacova. Fotografia: Maria João Gala/GI
Há dias, vi um filme (“Onde estás, Bernadette?”) sobre alguém que tinha de criar, para não se converter num perigo para si e para a sociedade. Eu preciso de andar na rua a conhecer pessoas como o Luís.

De vez em quando, acontece: olha-se em volta e tudo parece sem sentido. “O que é que eu ando aqui a fazer?” Bem-vinda à humanidade, sabe lá alguém responder a essa pergunta. Claro que, em certas alturas, parece haver resposta. É para sentir este frio agradável na barriga; é para desfazer esta injustiça; é para ver o avô emocionado por alguém da família ter acesso à Universidade; é para contemplar Nice das alturas e o porto de Marselha; é para resgatar este pequeno gato surdo; é para rir até perder o fôlego; é para comer esta palmeirinha com creme branco de que ninguém gosta tanto como eu.

Mas o que fazer com os momentos de desânimo, que sempre acarretam uma necessidade de escape? Quando as ânsias de pular para outros mundos ganham força, transporto-me, imaginariamente, para o sol. Ando por aí com nuvens brancas nos olhos, e vestidos leves de riscas, cestas de junco, braços abertos, condizentes com os desejos de expansão. Não é vontade de que o tempo passe, porque ele já corre desgovernado. É um lugar mental, que também pode ser (e é bom que seja) físico. Onde estão a tranquilidade e a beleza, de preferência, com boa comida para acompanhar?

Agora, quando penso verão, penso Itália. Parece perfeita para sugar o que de melhor se leva da vida. Lembra-me moda (meu amor não consumado), arte, pasta, piza e o Luís. Não que tenhamos ido lá juntos. Se associo Itália e o sol ao Luís é porque ele era luminoso, com a sua gentileza e sentido de humor; e porque me alegravam a fotografias que partilhou ao viajar por lá. Falo no passado pois, recentemente, ele deixou-nos. Ainda há poucos meses tínhamos voltado a reunir-nos, em trabalho. Dias inteiros na rua, a descobrir histórias e lugares. Sem adivinhar que aquela seria a última vez juntos – eu, ele e a Maria João. Estava sol.

Tenho pensado no que significa conhecer bem alguém, nas fronteiras que as pessoas erguem entre si e nos muros que, felizmente, saltam. Conhece-se bem alguém que nos serve de guia horas a fio, com quem se partilha refeições, pensamentos, gargalhadas fáceis, recomendações de férias, fotografias dos animais de estimação diretamente do telemóvel e outros pedaços de vida não editados? Conhece-se bem alguém com quem a empatia é imediata?

Somos pessoas, com diferentes forças e fragilidades. Umas comovem-se com uma paisagem verdejante e outras com uma catedral. Há quem não veja emoção em nada disso. Somos pessoas, e podemos fazer bem o nosso trabalho com piadas pelo meio, ou com confidências. Já chorei a entrevistar vítimas de incêndios e a visitar um canil. Assim como me vieram lágrimas de riso aos olhos, noutros contextos.

Guardo muitas imagens de gente comum que me marcou como jornalista. Guardo pormenores: garças de origami, uma mão pousada no braço, a generosidade de um convite para jantar com a família, quando falta uma pessoa à mesa e a dor ainda é tão fresca. Essas e outras memórias andam comigo até hoje. E, só por esses encontros, tudo terá valido a pena. Somos companheiros de viagem. Sigo adiante com palavras e gestos seus, algo que me confiaram ou um conselho que me deram. Não esqueço. Mesmo que não voltemos a cruzar-nos.

 




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