Os tesouros de Santa Maria, a ilha-mãe dos Açores

É um caso especial, enciclopédia geológica, caleidoscópio de cores e caixinha de surpresas. A ilha mais antiga do arquipélago não se mostra com exuberância mas esconde muitos tesouros. Cabem-lhe fósseis, colinas, campos, cascatas, ribeiras e até um deserto vermelho. Mas são os seus habitantes o maior de todos eles.

Santa Maria é um bolo às camadas”. Quem faz esta deliciosa analogia é Joana Pombo Tavares, enquanto nos guia pelas salas de exposição da Casa dos Fósseis/Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo, na Vila do Porto. A bióloga marinha e neta do naturalista que dá nome ao espaço poderia estar a referir-se à forma como a ilha se vai revelando gradualmente, mostrando um e outro detalhe à medida que lhe vamos ganhando a confiança. Mas é antes uma alusão à sua estrutura geológica, formada não só por camadas vulcânicas mas também sedimentares. Esta particularidade deve-se às circunstâncias da sua formação, há cerca de seis milhões de anos (é a ilha mais antiga do arquipélago). É que Santa Maria foi ilha duas vezes. Como? “Da primeira vez não estava estruturada o suficiente e colapsou, formando um banco marinho, e mais tarde, com nova atividade vulcânica deu-se a segunda formação da ilha”, explica Joana. Isto faz de Santa Maria um caso especial nos Açores. Aqui encontra-se uma variedade e riqueza de fósseis marinhos que não existe em mais nenhum outro lugar do arquipélago.

 

Alguns desses exemplares – conchas, dentes de tubarão e icnofósseis – estão expostos no centro, que acolhe também outras áreas de interesse do naturalista Dalberto Pombo. Um continental que veio a Santa Maria de passagem, acabando por se apaixonar – a sina de muitos outros forasteiros, como havemos ainda de ver ao longo desta viagem. O investigador era também fascinado por borboletas e outros insetos, tartarugas e aves. Foi pioneiro no estudo e preservação da diversidade geológica e biológica da ilha e as suas descobertas foram o ponto de partida para o conhecimento que hoje se tem sobre a ilha e a sua formação, abrindo caminho ao interesse de outros investigadores nacionais e internacionais.

O centro de interpretação é, por sua vez, o ponto de partida para descobrir estes tesouros geológicos in situ, através dos vários percursos pedestres que atravessam a ilha. O trilho da Costa Sul, por exemplo, que liga Vila do Porto – tem início do antigo forte de São Brás, erguido para proteger a ilha dos ataques dos corsários – à Praia Formosa, onde todos os verões se realiza um dos festivais de música mais antigos do país, o Maré de Agosto, passa pelo geossítio da Pedreira do Campo e as suas lavas subaquáticas. Os mais aventureiros podem sempre enveredar pela Grande Rota, um trilho de 78 quilómetros que dá a volta à ilha, e permite conhecer a palmo os segredos de Santa Maria.

 

PAISAGENS ÚNICAS
Outra forma de ver os geossítios da costa mariana é através de um passeio de barco, que dá acesso a lugares de outra forma impossíveis de chegar, como a gruta do Figueiral e a Pedra-que-Pica, e também praias secretas de areia clara (Santa Maria é a única ilha nos Açores onde a areia não é completamente vulcânica). O centro de mergulho Mantamaria, fundado por Jorge Botelho, um homem nascido quase em cima do mar e que para lá saltou desde muito cedo, é uma das empresas que organiza esses passeios, além de outras atividades como o snorkeling e o paddle. Mas a grande estrela da companhia são os mergulhos com os tubarões baleia e as jamantas, presença assídua e numerosa durante os meses de verão na baixa do Ambrósio, por muitos considerada um dos melhores locais de mergulho dos Açores.

Quem não mergulha – ou não havendo condições para a realização da atividade -, tem em alternativa uma experiência de realidade virtual, onde pode imergir no fundo do mar rodeado de jamantas, mas sem sair de terra.
E quem preferir manter-se completamente fora de água, pode apanhar boleia no todo-o-terreno do Marco Paulo, da Paraíso Radical, que, concentrando-se ora na costa norte, ora na costa sul, leva a conhecer as mais belas paisagens da ilha. “A mim dá-me gozo mostrar Santa Maria assim”, confessa Marco, não necessariamente pelos solavancos do passeio, mas antes pela possibilidade de se embrenhar por caminhos ainda mais próximos da natureza. Na realidade, não vamos propriamente à boleia, mas a ideia não é assim tão descabida. É, aliás, uma das mais belas características de Santa Maria. “Os marienses recebem bem qualquer pessoa, facilmente abrem a porta de casa e são capazes de levar as pessoas ao sítio que querem em vez de estar a perder tempo a dar indicações”, afiança o nosso guia, enquanto nos leva onde queremos ir, em busca dos tesouros da ilha.

Vista do Pico Alto (Fotografia: Pedro Correia/GI)

 

Uma das paragens incontornáveis é o Pico Alto, o ponto mais elevado de Santa Maria, que a 600 metros de altitude abre uma vista ampla e desimpedida sobre a ilha, de um lado coberta de colinas em cambiantes de verde e do outro plana, recortada em campos e pastagens até ao mar. A “ilha silvestre” e cheirosa de Raul Brandão é também uma ilha de contrastes e cores, que esconde locais únicos, como os prismas basálticos da Ribeira do Maloás, uma espécie de Calçada dos Gigantes, ainda mais bela quando deles escorre uma fina queda de água.

 

Seguindo a costa até ao extremo sudeste da ilha, a ponta do Castelo, abre-se a belíssima imagem do Farol de Gonçalo Velho, adentrado no mar, contra uma tela de azul escuro com rasgos prateados no céu. Avista-se, ladeado por currais de vinha – parcelas de vinhas em socalcos que aos poucos têm vindo a ser reabilitadas -, do miradouro de um antigo posto de vigia da baleia.

Cascata do Aveiro (Fotografia: Pedro Correia/GI)

 

Para lá da zona balnear da Maia, espera-nos a incrível Cascata do Aveiro , uma imponente queda com 110 metros de altura. É um lugar sereno, ideal para fazer um piquenique e ali ficar a ouvir o som da água. E se é serenidade que procuramos, também o Poço da Pedreira, já mais acima, em Santa Bárbara, é disso um bom exemplar. O manto verde em frente à grande parede vermelha, convida a estender uma toalha e ler um livro ou fazer exercício, acompanhado pela sinfonia de coaxos das rãs que se escondem no lago e o chilreio das aves. Outro exemplo do contraste de cores e cenários de Santa Maria é a paisagem árida e argilosa do Barreiro da Faneca, o local onde ocorreram as últimas erupções na ilha, e cuja coloração avermelhada lhe valeram a denominação popular de “deserto vermelho”.

Barreiro da Faneca (Fotografia: Pedro Correia/GI)

 

ILHA DE CORES E ROMARIAS
O caleidoscópio meteorológico de Santa Maria é um espetáculo a que assistimos absortos e fascinados durante horas. Sentados à mesa do restaurante-bar Ponta Negra, na Baía de São Lourenço, extremo oriental da ilha – e a bem dizer do arquipélago -, a saborear um delicioso cherne grelhado, que sucedeu à alheira de Santa Maria e ao queijo com molho de pimenta da Terra, vemos o mar oscilar entre um azul turquesa, sereno e convidativo, e um verde escuro, quase cinza, agitado e raivoso. O céu, ora limpo e brilhante, ora cinzento e a libertar descargas de chuva e vento, atravessadas por ocasionais raios de sol. O que fica entre estas mudanças de humor é o cheiro a maresia e o ar denso que nos cobre a pele. “Os Açores tem destas coisas”, nota Laurinda, a nossa guia hospitaleira nesta viagem à ilha mãe do arquipélago. É provável que o tenhamos apanhado num par de dias particularmente rebeldes, fruto da passagem da depressão Lola, mas só nos parece ter enaltecido ainda mais a sua beleza.

 

Abre-se entretanto o apetite para a sobremesa, também ela feita de contrastes: banana de Santa Maria flamejada e acompanhada com uma bola de gelado de caramelo.

 

De baterias recarregadas, as do corpo e as do espírito, continuamos viagem, seguindo as cores que identificam as diferentes freguesias de Santa Maria, de casas caiadas, à boa herança do sul. Assim, passamos o amarelo, o vermelho, o azul, e chegando ao verde, na freguesia do Santo Espírito, paramos para visitar o Museu de Santa Maria, atrás da bonita igreja de fachada basáltica de Nossa Senhora da Purificação. Além de vermos a coleção de mobiliário e utensílios tradicionais das habitações da ilha, e outros objetos relacionados com a vida quotidiana, ficamos também a conhecer um pouco melhor a história da ilha, a primeira, na geologia, na geografia, na descoberta e no povoamento.

Igreja de Nossa Senhora da Purificação (Fotografia: Pedro Correia/GI)

 

A relação com o barro e a olaria, as tradições, festas e romarias que juntam as suas gentes, como as celebrações do Divino Espírito Santo e os seus impérios, são uma dimensão fundamental da vida desta ilha. No verão, quando regressam os emigrantes, é quando há mais destes eventos, que são uma espécie de pagamento de promessa. Quem a fez tem de organizar a festa, anunciada com antecedência para que toda a gente saiba.

Cozinham-se sopas – com carne de vaca e pão -, que são distribuídas a quem aparecer. É habitual juntarem-se os amigos no final de um dia de praia para ir comer umas sopas aos impérios que estejam a acontecer, de preferência acompanhadas por vinho de cheiro. Todos são bem-vindos. O nosso guia de todo-o-terreno tinha razão. São as pessoas, afinal, o maior tesouro de Santa Maria.

 

Cerveja, pão e biscoitos
Os biscoitos de orelha, um dos produtos marienses mais característicos, são também uma das especialidades d’A Cagarrita, uma marca de doçaria artesanal criada por Rosa Cabral, com o apoio da Incubadora de Empresas de Santa Maria. Depois de dois anos de pesquisa e recolha do receituário da ilha, recuperou algumas receitas antigas e começou a juntar também algumas invenções ao catálogo, como os fósseis doces – biscoitos em forma de conchas, búzios e dentes de tubarão, que são uma homenagem a esses tesouros geológicos da ilha. Uma das mais recentes criações nasceu de uma parceria com outro colega da incubadora, Mark Oliver, um alemão radicado em Santa Maria, com o sonho de longa data de fazer cerveja artesanal. Há poucos meses criou A Nossa (para já ainda só à venda na ilha) e tem já oito variedades em garrafa e duas em barril. Para aproveitar a cevada e o malte de trigo excedente da produção, desafiou Rosa a fazer pão de cerveja, e assim foi.

Uma cozinha inesperada
João Ricardo e Bárbara Ramalho criaram uma das mais agradáveis surpresas de Santa Maria: o Espaço em Cena. Já foi creche, e hoje acolhe, simultaneamente, uma galeria, uma escola de dança, um grupo de teatro e um restaurante. A decoração da sala, com cadeiras de cores e feitios variados, e do mezanino, adornado com rádios e máquinas fotográficas antigas, reflete a criatividade da cozinha, marcada pela sazonalidade e pela fusão de sabores asiáticos com os produtos locais. A ementa é reduzida e varia diariamente. Pratos como o tataki de vaca com batata rosto e jus ou o lombo de atum braseado com choco salteado partilham sempre o menu com uma proposta vegetariana, como os bolinhos de queijo halloumi e vegetais. Sempre firme na carta é a popular mousse de lima, fresca e leve.

Legado americano
O aeroporto de Santa Maria foi em tempos um dos mais estratégicos do mundo, primeiro por sido base da força aérea americana durante a Segunda Guerra Mundial e mais tarde por ter servido de escala nos voos intercontinentais. Desta presença americana na ilha, a que se deve a sua tradição cosmopolita, ainda restam vestígios, como as antigas casas do aeroporto e o antigo cinema, que chegou a ser o maior dos Açores (existe um guia virtual pelos pontos de interesse do aeroporto). Outro exemplo do legado americano na ilha não tem propriamente ligações a esses tempos, mas antes a um mariense emigrado nos EUA, que lá aprimorou a arte de fazer pizas e as trouxe para a ilha, há mais de 50 anos. No Central Pub, além das pizas Boston Style, também há espaço para os típicos anéis de cebola frita e as asas de frango (e até jantar de Ação de Graças), sem que fiquem esquecidos os sabores açorianos.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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