Mergulhar na água e na história da vila de Luso

Os anos dourados do Luso aconteceram há um século. Tanto tempo depois, os herdeiros da vila regressam às origens e lutam para erguer de novo a beleza arquitetónica, a riqueza gastronómica e o património natural.

Uma chuva miudinha adensa a névoa que envolve os palacetes do Luso, a maioria à espera de uma nova vida. Aquela que já calhou em sorte ao Grande Hotel da vila, por estes dias casa de tantas equipas desportivas, que descobriram ali o lugar ideal para retemperar forças. É assim há meia dúzia de anos, mas não foi sempre. O edifício amarelo que contrasta com o verde da serra do Bussaco, ou com o azul-turquesa da piscina olímpica que se tornou imagem de marca do hotel – rivalizando com as termas – ergue-se no centro da vila tão imponente como dantes, mas com novos inquilinos.

Grande Hotel de Luso Resort & SPA. (Fotografia de Maria João Gala)

Grande Hotel de Luso Resort & SPA. (Fotografia de Maria João Gala)

Quem agora vai ao Luso procura mais do que remediar as maleitas do aparelho circulatório, dos rins, ou da tensão arterial. A água termal é hoje muito mais usada para o bem-estar, para o circuito em forma de spa. À sombra dessa quimera de ouro descoberta no Luso nasceram hotéis, pensões, casas de hóspedes e até um casino. “Em determinada altura era uma vida de ócio que as elites procuravam aqui. Um tempo de ócio. Ao mesmo tempo que nascia aquela que consideramos a primeira grande ‘escola’ de turismo e hotelaria: foi daqui que partiram camareiras e empregados de mesa para outras zonas do país, nomeadamente para os hotéis do Algarve”. Inês Seabra traça em duas pinceladas o retrato antigo do Luso, enquanto percorremos a vila, com paragens junto a cada um dos palacetes e quintas. Também atravessamos a fachada da pensão Lusa, que foi dos avós, e que – como tantos alojamentos – está hoje fechada, à espera de uma nova vida.

Inês, designer de profissão e agente cultural de paixão, fez o que têm feito muitos dos filhos da terra nos últimos anos: voltou a casa, às origens, e é ali que mergulha nessa empreitada de reerguer o Luso, dar-lhe vida, para lá da água. É ela um dos rostos da Geo2Go, a empresa de animação turística que embora esteja mais vocacionada para o turismo de natureza, também se dedica a guiar os visitantes pelo património edificado. E é tão vasto, esse. Há pontos obrigatórios, como a antiga casa do marquês da Graciosa, hoje Hotel Alegre, ou a imponente quinta da torre do viso, casa de Emídio Navarro, o grande impulsionador do Luso. Jornalista e político (chegou a ser ministro das Obras Públicas no final do século XIX), movimentava-se entre a fidalguia nacional e europeia, ao ponto de trazer para a região arquitetos como Luígi Manini (autor do projeto do Palace Hotel do Bussaco) ou Barbosa Cohen, este último autor de obras como a Vila Missi.

Vila Missi. (Fotografia de Maria João Gala)

Nessa viagem no tempo entre os chalés da vila, quase todos de finais do século XIX, saltamos para meados do século XX, para a casa onde a PIDE prendeu Álvaro Cunhal, na noite de 25 de março de 1949. Ali se escondera o carismático líder comunista, juntamente com Sofia Ferreira e Militão Ribeiro. Precisamente ali, onde várias figuras do Estado Novo se movimentavam, entre os banhos termais e as noites do casino.

Não se estranha por isso que Bissaya Barreto, durante décadas figura central da Sociedade da Água do Luso, amigo pessoal de Salazar e Cerejeira, tenha impulsionado a construção do Grande Hotel, que viria a ser inaugurado no verão de 1940. João Diniz, o atual presidente do Conselho de Administração da Fundação Bissaya Barreto, que detém o hotel, sabe bem desses meandros. Mas também já sabia que os tempos eram outros quando em 2016 assumiu a liderança do hotel, reinventando-o, através de um considerável investimento que contemplou a reabilitação global do edifício, já então voltado para os grandes grupos desportivos. São eles que ocupam uma boa parte dos 132 quartos. “A âncora do Luso deixou de ser o termalismo. Hoje é o hotel e a mata do Bussaco”, explica à “Evasões” este engenheiro mecânico rendido ao turismo, numa altura em que projeta novas obras para o complexo.

Atravessamos as áreas comuns do Grande Hotel onde um gigante painel de K San Payo, em 1958, retrata bem o que era o Luso naquela época, a Mealhada, a Bairrada em geral: pastoreio, agricultura, a ruralidade que a Junta de Turismo “vendia”. Foi noutra vida. Mas à mesa do restaurante continuam a servir-se os produtos endógenos da região, há décadas sob a batuta do chefe José Neves. Entrou ali pela primeira vez em 1977, como ajudante de cozinha. Fez-se cozinheiro principal já na década de 90 e acompanhou todas as mudanças e tendências. A mais recente foi a criação do menu Nutrição e Saúde, a pensar em quem fica no hotel para cumprir um programa termal. Prepara as entradas de melão com fiambre de peru, um prato de novilho com brócolos e espirais, e sorbet de iogurte e groselhas, com o mesmo entusiasmo com que leva a cabo o seu filet mignon com redução de vinho tinto da Bairrada. Na terra dele, o leitão faz-se sempre presente à mesa, até no Grande Hotel do Luso. Assim como os caramujos, doce típico local à base de ovos-moles, ou ainda o Morgado do Bussaco, outra tentação.

Pedra, sal e doces

Claudemiro Semedo divide os dias entre o restaurante Pedra de Sal e a Junta de Freguesia do Luso, a que preside. Em 2011 decidiu dar novo uso ao rés-do-chão da antiga pensão dos pais, e desde então tornou o restaurante numa referência da região. Quem aprecia carne já sabe que o espaço – intimista e acolhedor – é ponto de paragem obrigatória. Mas a cozinha também se empenha no polvo à lagareiro, no bacalhau, ou até no risoto de cogumelos – para vegetarianos. “Procuro ter aqui alguns tipos de carne que não é comum encontrarmos nos restaurantes da região”, conta Claudemiro, referindo-se a peças importadas dos Estados Unidos da América, da Argentina, ou tão simplesmente do Alentejo, capital do porco preto.

É com uma pontinha de orgulho que recebe, todas as semanas, clientes de várias zonas do país e do estrangeiro. Mesmo enquanto desempenha o papel de anfitrião no Pedra de Sal, não deixa de apregoar a quem o visita os predicados do Luso: “Estamos perto de tudo, e rodeados do melhor da natureza”.

(Fotografia de Maria João Gala)

Guida Bonito, a mulher de Claudemiro, trocou o Alentejo pela Bairrada e a advocacia pelo turismo, gerindo diretamente o complexo Rosa Biscoito, uma das pérolas da arquitetura local, onde outrora funcionava o salão de chá do Casino do Luso.

Rosa Biscoito. (Fotografia de Maria João Gala)

Desde 2019 que se esmera com o espaço, não apenas nessa categoria, mas também com uma garrafeira. E no primeiro piso, um alojamento local. Ali também é possível fazer refeições ligeiras e saborear uma panóplia de chás. Há ainda uma loja gourmet integrada.

Rosa Biscoito. (Fotografia de Maria João Gala)

O espaço onde funciona o Rosa Biscoito faz parte do complexo do Mercado Municipal. Ao lado, a Fonte de São João, onde diariamente há centenas de pessoas a abastecer garrafões de água. A fama da água do Luso vem de longe.

Uma surpresa vegana

Um dos locais mais aprazíveis na vila é o parque verde que circunda o lago artificial. No coração desse jardim, em pleno edifício da piscinas municipais, há um novo restaurante vegano, que paradoxalmente se chama Dona Sardinha. A explicação é simples: quando Luísa Ferreira mudou a alimentação, já lá vão alguns anos, foi o peixe que mais lhe custou deixar de comer. Há muito tempo que esta filha da terra se dedica à cozinha alternativa, com outros projetos. Mas foi no seu projeto de vida que encaixou Sandro Machado e que, juntos, constroem agora esta novidade do Luso, instalada na antiga cafetaria das piscinas. O espaço assemelha-se a um jardim de inverno e em breve será completado com uma lareira suspensa.

Dona Sardinha. (Fotografia de Maria João Gala)

Luísa Ferreira e Sandro Machado. (Fotografia de Maria João Gala)

A designer Maria Vilhena idealizou-o assim, à beira do lago, com muito verde no interior – transportando um pouco da Mata Nacional do Bussaco para o Luso. Há também apontamentos de azul em homenagem à água. Bastaria o ambiente para conquistar qualquer visitante, mas depois há o resto: bolinhas de alheira à Várzeas, cogumelos à Bussaco ou à Luso, todo um rol de pratos batizados com o nome das aldeias à volta.

E há ainda as sobremesas, imperdíveis, como a mousse de abacate e cacau, entre outras. Como se não bastasse, Luísa conseguiu recriar a típica sandes de leitão, mas para veganos – à base de cogumelos eryngii. Além da carta de vinhos da Bairrada, todos os dias há sumos variados, limonada e chás. Nos dias de sol, há ainda uma esplanada junto ao lago.

Um vinho novo na Bairrada

A imponência da Mata Nacional do Bussaco, bem como o belo edifício do Palace Hotel, desviam muitas vezes as atenções do Luso, a freguesia mãe de todo esse tesouro natural. Mas ali, onde nasce a água, não há ciúmes. Pelo contrário, há um espírito de comunidade e entreajuda que atravessa a restauração, a hotelaria, e termina onde tudo começa: na terra. Passaram muitos anos desde que o bisavô de Tozé Carvalho descobriu a mina de água no terreno de cultivo e dali construiu uma fábrica de refrigerantes, a Sumos do Buçaco. E ele, parte da terceira geração, ligado à terra e às raízes, trocou na idade adulta o gosto da laranjada pelo vinho, depois da formação em agronomia.

Da Mina. (Fotografia de Maria João Gala)

Tozé Carvalho. (Fotografia de Maria João Gala)

Em 2017 começou a plantar a vinha e no ano passado fez o primeiro vinho. Tem agora dois hectares e meio onde aposta em castas estrangeiras, como a Pinot Noir Chardonay, que lhe permitem conseguir um tinto leve e fresco, como não há na Bairrada. Além desse, a vinha Da Mina já lhe deu brancos e espumantes de qualidade reconhecida. Na adega, começou entretanto a fazer provas, e quer agora fazer crescer a área de eventos.

Do Luso ao Bussaco

Das ruas do Luso à serra do Bussaco, o geógrafo João Silva conhece de cor cada trilho. Faz parte do naipe de habitantes da freguesia que prefere a floresta em dias de nevoeiro ou de chuva miudinha.

Trilho dos azevinhos. (Fotografia de Maria João Gala)

Foi esse amor ao património natural da região que o fez criar, em 2018, a Geo2Go. “Porque tirando o Douro, não temos praticamente nada estruturado para atrair o turismo de natureza, de norte a sul do país”, conta à “Evasões”. É por isso que a empresa de animação turística está vocacionada para atrair público ao interior norte e centro, e que as caminhadas em trilhos de montanha vão desde o Bussaco ao Caramulo, à Lousã, mas também às serras de Sicó, do Açor, da Arada ou da Estrela, até ao Alvão. O grupo de amigos que lidera a empresa também organiza eventos ao nascer do sol e um conjunto de atividades ao ar livre – por ora, uma vez que a ideia é ter um espaço que permita também práticas indoor. Porém, nada se compara à floresta. “Esta serra é um longo dorso com 15 quilómetros, com trilhos belíssimos”, sustenta João Silva, enquanto subimos do Luso ao Bussaco. Algures a meio, uma vereda leva-nos ao trilho dos azevinhos.

Trilho dos azevinhos. (Fotografia de Maria João Gala)

Luso Antique. (Fotografia de Maria João Gala)

Há também castanheiros que se atravessam no caminho. E dali, do ponto mais alto, vê-se o Luso. A terra que foi pujante até aos anos 1970, um tempo áureo que agora foi imortalizado por toda a vila através do projeto luso antique: o visitante espreita por um visor, como se fora uma máquina fotográfica, e fica a saber como era aquele lugar há muitos anos. A beleza das pequenas coisas, por toda a vila. E essa, enquanto houver água, terá vida.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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