Apetece ouvir: 8 discos para se ir passando a porta

(Fotografia de Orlando Almeida/Global Imagens)
Esta semana, mais um recomeço. Titubeante, como têm sido os passos em volta de uma pandemia que condiciona ânimos e decisões. Porém, a vida exige que a usufruamos. Os discos que propomos captam os autores em momentos de reconfiguração, sob incertezas de nível social, estético ou estritamente pessoal. Com eles, o Mundo ficou um bocado melhor.

“Everyone walk in brightness ‘Cause it’s anew day, Anew day”
Mary Margaret O’Hara, cantora canadiana

 

A soul como espelho de um mundo em convulsão

Marvin Gaye
“What’s Going On”, 1971

No início de uma nova década, o cantor norte-americano estava especado numa encruzilhada, com um percurso de excelente vocalista soul dado aos trabalhos do coração pelas costas. Não olharia para trás. Saiu do impasse com uma obra-prima, sustentada a reflexões sobre direitos humanos (tema-título e “Save the children”), o regresso amargo de um veterano da guerra do Vietname a casa (“What’s happening brother?” e “Flyin’ high”), religião (“God is love” e “Wholy holy”), capitalismo (“Inner city blues”) e…meio ambiente. Há cerca de 50 anos, “Mercy, mercy (The ecology)” já falava de oceanos conspurcados, de peixes movidos a mercúrio, poluição do ar e sobrepopulação. Gaye nunca mais seria o mesmo. Sorte nossa.

 

Uma banda e uma cidade renasceram aqui

Joy Division
“Unknown pleasures”, 1979

O furacão punk tinha ameaçado com “No future”. Os Joy Division, quarteto de Manchester, Inglaterra, com génese precisamente na tormenta, acabariam por negá-lo de forma tão convincente que “Unknown pleasures” é um dos mais excecionais álbuns de estreia da História da música. Para isso, foi necessária uma recalibração estética e pausa para pensar. Voltariam munidos de percussão marcial, baixo compressor, guitarra como uma lâmina e a voz e as letras de Ian Curtis. E a produção “fantasmagórica” de Martin Hannett. É, sobretudo, uma viagem interior. Dentro de si (Curtis) e da cidade. É uma beleza dorida, que abraça e aperta e que só a custo nos deixa respirar. Os Sex Pistols erraram. O punk tinha um pós.

 

Manifesto de revolta contra o destino

Bob Marley & the Wailers
“Uprising”, 1980

Suspeita-se que Bob Marley gravou “Uprising” sabendo que dificilmente continuaria a resistir ao cancro que o afligia há três anos – morreu no ano seguinte ao da edição. Mas, paradoxalmente, é um LP com vista para a vida, de palavras dirigidas à salvação (ainda que precedida do respetivo pecado, segundo as convicções religiosas do músico jamaicano). Se “Real situation” era o pessimismo em forma de música, “Zion train” apelava à união entre os povos para “agradecer ao Senhor” e “Coming in from the cold” personificava a esperança, do que quer que fosse. A maior estrela do reggae finaliza o disco com “Redemption song”, epitáfio libertador. O termo “uprising” significa ação contra a autoridade. No caso, a da morte.

 

Olhar para as estrelas no fundo da sarjeta

John Cale
“Music for a New Society”, 1982

As décadas de 60 e de 70 tinham sido, em termos criativos, formidáveis – os dois primeiros álbuns dos Velvet Underground e “Paris 1919” e “Fear”, a solo -, mas extenuantes no plano pessoal. Na sua quietude asfixiante, “Music for a new society” representa uma espécie de estabilização da loucura. Mais fundo seria difícil. Porém, foi aos recantos obscuros da mente que o galês foi buscar forças para exterminar uns quantos demónios e potenciar uma carreira notável que, depois de “Taking your life in your hands”, “Thoughtless kind”, “If you were still around”, “Close watch”, “Mama’s song”, “Broken bird”, “Changes made” e “Damn life”, entre outras canções, já conta 38 anos. Tão arrepiante quanto estimulante.

Caminho novo depois do ajuste de contas

José Mário Branco
“Ser solidário”, 1982

“Ser solidário” é José Mário Branco em modo “acerto de contas”. Quando foi editado, o duplo álbum já tinha quilómetros de palco, tarimba forçada pelo desinteresse das editoras. Mas é, igualmente, a base para uma renovação da carreira do autor de “FMI”. Isto porque a riqueza estética acumulada no disco permite, em simultâneo, o ajuste de contas e o passo em frente (consubstanciado, sobretudo, nos magistrais trabalhos de arranjador e produtor que José Mário Branco viria a protagonizar). Sem fronteiras tipológicas – a tradição lusa em rota de colisão com o jazz, por exemplo -, os 15 temas de “Ser solidário” (gesto vital nestes estranhos tempos) revelam um músico português atento aos sinais de futuro.

Folha em branco para apaziguar o niilismo

Einstürzende Neubauten
“Tabula Rasa”, 1993

Surgiram com a intenção – mais conceptual do que literal – de “destruir a música”. Às ferramentas tradicionais (bateria, baixo e guitarra), adicionaram berbequins, martelos pneumáticos, metais de origens diversas e outra parafernália que uma metalúrgica não desdenharia. Manual dividido por quatro LPs: “Kollaps”, “Zeichnungen des patienten O.T.”, “Halber mensch” e “Haus der lüge”. Depois, “Tabula rasa”, folha em branco e oportunidade de reflexão estética. Resultado: o disco mais aventureiro, provocador e, contudo, estranhamente acessível dos alemães. “Descobriram” o silêncio e nele alojaram o experimentalismo de outrora e o formato canção (no entendimento distorcido dos Einstürzende Neubauten). Genial.

Limpa-se as lágrimas e inicia-se a reconstrução

Bruce Springsteen
“The Rising”, 2002

Em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos viram o terrorismo da Al-Qaeda entrar-lhes pelas fronteiras adentro. Morreram milhares de pessoas e um orgulho ocasionalmente serôdio que Bruce Springsteen vinha sublinhando em quase 30 anos de canções ficou seriamente amolgado. Perante o desastre, o “boss” agiu como os conterrâneos: chorou, limpou as lágrimas e ergueu-se. Chamou a E Street Band – inativa há alguns anos – para o acompanhar e criou “The rising”. É um disco importante pelo aspeto simbólico (condição reforçada por títulos como “Lonesome day”, “Into the fire”, “Countin’ on a miracle”, “Worlds apart”, “Let’s be friends”, “You’re missing” e “My city of ruins”) e enquanto reserva de ânimo.

Ressurgimento após paraísos artificiais

Peter Perrett
“How the West was won” , 2017

Não foram poucos os que chegaram a preparar obituários para Peter Perrett. Por certo, não faltariam elogios ao antigo líder dos Only Ones, mercê de um trio de LPs – o homónimo, “Even serpents shine” e “Baby’s got a gun” – que a banda gravou para prestigiar o pop/rock inglês. Em 1984, o grupo entregou a chave do estúdio. Doze anos depois, Perrett – desde sempre inclinado para os paraísos artificiais – lançava um esquecível disco a solo. E, então, o silêncio. E muita heroína. Há três anos, desmarcou o encontro com o Criador e, apoiado pela mulher/empresária e pelos dois filhos, músicos, registou um ótimo álbum de regresso, com olá irónico a Kim Kardashian e tudo. Pesquise-se também “Humanworld”, de 2019.




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