Caldas da Rainha: a cidade que é outra louça

Rota Bordalliana, na Rua Sebastião de Lima, Caldas da rainha. (Fotografia de Maria João Gala/Global Imagens)
A herança de Rafael Bordallo Pinheiro está por toda a parte: da fábrica de faianças aos ceramistas, da Escola de Arte e Design ao Teatro. Caldas da Rainha - que agora faz parte da rota mundial da UNESCO - é uma mistura perfeita de tradição e criatividade.

Uma chuva miudinha ameaça turvar as cores da PRAÇA DA FRUTA, mas a profusão de bancas, legumes, flores e frutos frescos leva sempre a melhor. Estamos no inverno, o Oeste ainda é o que era, só que a cidade consegue impor-se calorosamente. Cheira a maçãs de Alcobaça ou à pera-rocha do Bombarral, e percebe-se como o verde das hortaliças que se cultivam nas redondezas inspirou tão bem as fábricas de louça. Por toda a parte moram registos de arte contemporânea, que convivem bem com o legado desse artista maior que foi Rafael Bordallo Pinheiro, tão presente na cultura das Caldas da Rainha.

Praça da Fruta.

Viajar pela cidade é um exercício de regresso ao passado, mas também de descoberta. E por isso, talvez a melhor forma seja começar pela rota Bordaliana, um percurso cultural e artístico com mais de 20 figuras de cerâmica, construídas à escala humana. Lá estão o zé-povinho, o padre-cura, a saloia, as rãs, sardões e caracóis, mais as folhas de couve em tom de “verde-caldas”, como lhe chamam por aqui. Na verdade, há paredes revestidas em azulejo que reproduzem fielmente a cor vibrante.

Noutro tom de verde, o PARQUE D. CARLOS I acolhe, também ele, uma natural paleta de cores únicas: a terracota do chão, o lago, os patos, os pavões que se passeiam nos terraços da cidade, voam até aos beirais dos prédios antigos e dali observam todo o movimento. O parque encerra todo o naturalismo e romantismo com que o arquiteto Rodrigo Berquó o desenhou, nos finais do século XIX.

É uma espécie de floresta encantada no meio da cidade, ligando-a, sob um “céu de vidro” ao Hospital Termal, pioneiro no Mundo a “curar certas maleitas”. Foi assim, através das “águas mornas e com características especiais” que a rainha D. Leonor descobriu a terra onde a realeza e a fidalguia haveriam de encontrar um porto de abrigo no século XIX. Mais tarde, tornar-se-ia palco de várias artes, um gosto que perdura, uma herança que se regenera.

Um centro comercial a céu aberto

Nas ruas, o comércio reinventa-se. É assim na LOJA DO SENHOR JACINTO, cuja história se escreve há mais de um século. De mercearia fez-se retrosaria, e nos últimos anos evoluiu para outro conceito: ali continua a vender-se fazenda a metro e cones de linhas, mas são as peças dos artesãos da cidade e da região quem mais ordena, desde a cerâmica à caricatura.

Cláudia e Samuel souberam preservar a história de uma loja que permanece na família Jacinto há várias gerações. Entretanto, Samuel dedica-se a trabalhar a madeira, e há na loja várias peças a que deu vida.

Noutra rua onde o comércio tradicional ainda resiste, há uma marca que cresce: a MERCEARIA PENA, nome do café que se bebe por toda a parte nas Caldas da Rainha. “É um café à moda antiga, uma mistura de café e chicória”, conta Rui da Barnarda, cuja família é a terceira proprietária da vida da Mercearia, nascida em 1909. Quando no final dos anos 1990 a Pena tinha o destino marcado para fechar, o empresário deu-lhe uma nova vida. Registou a marca “Café da Avó” e fez crescer o negócio, com vários derivados. Na mercearia vendem-se ainda muitos produtos a granel, muitos deles locais e regionais, como os famosos lagartos, um bolo seco que acompanha bem o café.

Mercearia Pena.

A tradição ainda é (mesmo) o que era

Da tradição que a cidade consegue preservar, a CASA ANTERO bem pode escrever um capítulo. Também aqui os laços de família ligaram o passado ao presente, desenhando agora um futuro que passa pela remodelação do espaço físico, sem nunca perder de vista a alma daquela antiga taberna. Paulo Feliciano e a irmã, Anabela, herdaram dos pais a casa onde tudo começa e acaba ao balcão – o mesmo desde 1957. “Começou por vender vinho a copo, o que ainda hoje se mantém. As pessoas traziam a comida e petiscavam aqui. Mais tarde, começou por se fazer uma sopa, depois uns pasteis de bacalhau, e assim nasceu esta casa de petiscos”, conta o proprietário, que se desdobra em duas salas.

Casa Antero.

A vitrina do balcão exibe sempre salada de polvo, orelha de porco ou outros petiscos tradicionais, mas há iguarias deste tempo para provar: as empadas de morcela com doce de abóbora, queijo, mel e nozes; os croquetes de espinafres, os ovos rotos com batata-doce, entre muitos outros. É difícil escolher, mas Paulo está sempre pronto a ajudar na sugestão.

Nas Caldas há como que uma tradição de guardar os negócios no seio da família ou dos habitantes da cidade, num peculiar registo de amor à terra. É assim também no MARATONA, que se divide em três espaços distintos: o restaurante, o café-bar e a esplanada. Quedamo-nos pelo primeiro, onde o chefe Ricardo Ferreira surpreende com uma carta diferente em cada uma das estações.

José Elói do Vale recuperou no início da década de 2000 um espaço que abrira portas nos anos 1960, e que até então funcionara como sala de jogos e café tradicional. A grande mudança aconteceu em 2009, e desde então a equipa corre para ganhar cada prova. É uma cozinha diferente, contemporânea, que se faz de pratos como o risoto com alho, coentros, camarão e vieiras, que dá pelo nome de “senhor Vieira da Costa”, não sem antes provar entradas como a “vergonha alheira” (strudel de filo com alheira, chutney de marmelo e puré de maçã), ou o “tá bonito” (tártaro de atum fresco marinado em kimchi, lima, coentros, pasta de abacate, algas e cebola roxa em pickle). Aqui, também a sobremesa é uma agradável surpresa, em modo fruta ou chocolate.

Casa Museu São Rafael com peças de Rafael Bordallo Pinheiro.

Para lá do Imaginário, numa Adega portuguesa

Albertino Catarino deixou a região da Bairrada quando tinha apenas 12 anos, para trabalhar na restauração das Caldas da Rainha. Era o tempo em que as termas e as faianças faziam movimentar a cidade, nasciam estabelecimentos comerciais e emprego por toda a parte. E foi ali que assentou arraiais para a vida toda, com a mulher, Fátima, e os dois filhos. Foi na aldeia de Imaginário, colada às Caldas, que Albertino decidiu construir a casa onde mora. Sem saber, estava a abrir a porta de um dos restaurantes de cozinha tradicional portuguesa mais emblemáticos do país, a ADEGA DO ALBERTINO. “Isto aconteceu de uma forma inesperada. A minha mulher fazia uns pastéis de bacalhau, uns rissóis, e as pessoas sabiam que tinha mão para a cozinha. Um dia pediram-nos se ela fazia aqui um cozido à portuguesa para um grupo. Foi um sucesso tal que acabámos por abrir a Adega”. Já lá vão 31 anos. O desafio é provar as variadas entradas (em que até os enchidos são feitos na casa) e conseguir saborear pratos principais como o polvo na telha ou o entrecosto em vinha d’alhos. Pelo menos uma vez na vida é imperioso provar a pera borrachona em cama de suspiro, doce de ovos e calda de ginja.

Adega do Albertino.

Quando a noite cai, há um lugar que junta quase todos os ingredientes que fazem das Caldas da Rainha uma cidade tão rica em história, arte e cultura. O 19 TILE abriu em agosto de 2018. Pedro Felner era um viajante experiente e sabia bem o que queria fazer daquele imóvel histórico da cidade. “Quisemos preservar e dignificar, dando-lhe uma nova vida”. O hotel (boutique house) é todo ele dedicado à cerâmica, começando em Bordallo Pinheiro e passando pelos cerca de 50 ateliers de ceramistas atualmente espalhados pela cidade. De modo que cada quarto é dedicado a um artista contemporâneo, dando a conhecer o seu trabalho.

Pedro consegue descrever bem o público que mais procura o 19 Tile. “Pessoas viajadas e que querem uma experiência diferente dos tradicionais hotéis. Que querem um espaço de proximidade, onde exista uma história. É interessante também perceber que grande parte dos nossos hóspedes são pessoas sensíveis à cultura, à arte e ao design”, refere. Na sala de pequeno-almoço há uma mesa enorme, comprida, qual casa de família. Há sempre laranjas e outras frutas frescas, e um cheirinho a café Pena. Ao lado fica a Praça da Fruta, dali se sente a cidade. No dizer de Paulo Feliciano, “a melhor do mundo”.

Louças típicas das Caldas.

***

Conhecer a história com Alter Egos

Inês Fouto e Mariana Calaça Baptista encarnam na perfeição os ALTER EGOS DE BORDALLO, através de diversas personagens que contam não só a história da cidade como desse tempo em que Rafael Bordallo Pinheiro marcou para sempre a vida de Caldas da Rainha. Seja com a Marquesa, com a Maria Saloia, o gato Pires, ou a Maria dos Pontos nos ii, a partir do Lago do Parque D. Carlos I é possível conhecer a alma da cidade, ao longo de um percurso de duas horas, para grupos mínimos de 10 pessoas. A iniciativa é da Cenas – Companhia de Teatro das Caldas, criada em 2016 pela atriz Inês Fouto. De resto, é ela quem dá corpo e alma à marquesa, entre outras. «Temos várias propostas, consoante aquilo que o público quiser», sublinha a atriz, que lembra como é importante ter o espaço público como cenário.

Rute Rosa e Sérgio Vieira com três jarras chamadas “A Jarra de Rufos”.

Pastel Bordalo, ou a doçaria revisitada

Paulo Santos é natural da Covilhã, mas personifica bem a velha máxima de que a nossa terra é aquela onde vivemos. Chegou ao oeste há alguns anos para dar aulas no curso de pastelaria avançada, e acabou por ficar. Em 2013 abriu um dos espaços mais concorridos da cidade – a padaria FORNO DO BECO, um entra-e-sai de gente que não dispensa o pão quente, os bolos, a pastelaria mais tradicional ou fina. Entre as inúmeras variedades, há o pastel Bordalo, vencedor do concurso promovido em pela Associação Comercial em 2017, que pretendia “encontrar um novo ícone da doçaria caldense”, que se juntasse às cavavas e beijinhos. Foi assim que nasceu aquele pastel de grão de bico, amêndoa, ovos, açúcar, canela e queijo de mistura. Que se tornou um caso sério de sucesso.

Design inspirado na cultura popular

Rute Rosa e Sérgio Vieira são o exemplo perfeito de como a história da Escola Superior de Artes e Design se escreve com êxito. Foi lá se conheceram, antes de criarem essa parceria para a vida que se cruza no LABORATÓRIO D´ESTÓRIAS. É ali, no centro das Caldas, que nascem corvos, joaninhas, melros, gafanhotos, azulejos ou jarras em cerâmica, cada um deles como uma história para contar. “O que tentámos foi cruzar vários saberes e várias formas de arte», conta Rute, quando fala do convite a escritores e ilustradores portugueses para desenhar essas histórias. Juntos, trabalham a etnografia portuguesa, repescam memórias de infância e tradições, além de valorizar a cerâmica das Caldas. Começaram com um manjerico, hoje têm cerca de 20 peças. Mais de 30% é para exportação, para boa parte do mundo.




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