Crónica de Inês Cardoso: Natal de lugares-comuns

É fácil a alegria quando a ingenuidade nos faz espantar com as coisas mínimas e tudo está no sítio que imaginamos ser o certo. Difícil é convocá-la quando tanto nos desencanta e nos afasta da magia.

A minha mãe é a segunda mais velha de 11 irmãos e o meu pai o mais velho de cinco. O meu Natal sempre teve mesas cheias de gente, recitais e teatros preparados pelos primos, panelas grandes sobre o fogão, quantidades generosas de filhós amassadas com afinco e fritas num ritual demorado, à lareira. O Natal da minha infância tinha presépios com musgo em que se criavam labirintos percorridos por figuras coloridas, pastores de ovelhas encavalitadas às costas e mulheres de cântaro à cabeça. Tinha café de “pichorra” ou chá de folhas de laranjeira e conversas pela madrugada dentro. Tinha o madeiro de Natal, a enorme fogueira de troncos apinhados para durar e aquecer todos os que se abrigassem à sua volta. Tinha barulho, muito. E, à distância que confere às memórias de infância tons exageradamente perfeitos, tinha sorrisos em abundância.

É fácil a alegria quando a ingenuidade nos faz espantar com as coisas mínimas e tudo está no sítio que imaginamos ser o certo. Depois vamos crescendo, nesse processo tantas vezes doloroso que nos confronta com as sombras e nos faz duvidar das promessas de amor infinito que víamos sair do sorriso de um minúsculo menino de barro. Ou vamos sentindo a aceleração da existência e o pecado moderno da falta de tempo, no gigantesco vórtice que nos sufoca e engole, e irritamo-nos com o Natal de compras, correrias e stress. Ou sentimos o efeito da perda e na noite da consoada experimentamos a saudade dos que já não se sentam à mesa. Há muitas razões para perdermos a fé no Natal. A toda a hora ouvimos relatos de quem já celebrou com entusiasmo mas cada vez se afasta mais da quadra. Quem critique a superficialidade, os excessos e a obrigação social de estar (ou parecer) feliz nesta altura do ano. O difícil é mesmo convocar a alegria quando tanto nos desencanta e nos afasta da magia.

O que fica na memória é a presença. A esperança e vontade de acreditar que é possível recomeçar sempre.

Uma das muitas coisas fantásticas de termos filhos é que eles nos recolocam com frequência nessa posição de criança que já fomos. Os meus e os primos resgatam a tradição do sarau de Natal. Ainda dezembro de 2019 vai a meio e já perguntam que ideias tenho para o calendário de advento que lhes irei fazer em 2020. Entusiasmam-se a procurar receitas vistosas para o jantar, mesmo sabendo que o mais certo é na hora da verdade acabarmos a abandonar metade dos projetos ambiciosos de partida. Sonham com a limpidez dos anos iniciais e nos seus olhos vemos o brilho com que em tempos vivemos as festas.

É por ser difícil viver o Natal de forma vibrante e quente que ele é tão urgente e necessário. Não interessa se na mesa há bacalhau, polvo ou a hortelã dos maranhos eleitos para as celebrações lá de casa. Os pormenores da ementa ou da decoração contam muito pouco, porque na memória fica a partilha que se faz à mesa. A presença. A esperança e vontade de acreditar que é possível recomeçar sempre. Mesmo nos momentos de fragilidade ou sobretudo neles, porque só os frágeis recomeçam.

É lugar-comum? Talvez. Mas do melhor da vida não há que fugir, por mais que as declarações de amor soem, como diz o poeta, ridículas.




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