Crónica de Nuno Cardoso: Nas margens do rio Garona

(Fotografia: Pixabay)
As cidades são como nós. A espinha dorsal pode ser a mesma, mas a personalidade vai-se ajustando com o tempo. Bordéus não é exceção.

Numa das margens do rio Garona, que banha a cidade de Bordéus, conhecida pelo legado vínico, uma mulher viaja em cima de um burro, num irregular caminho de terra batida. Pela água, navegam pequenas embarcações de pescadores e comerciantes, ou não tivesse sido este um importante epicentro portuário. A descrição visual faz-se num óleo sobre tela do século XIX, assinado por Jean-Paul Alaux, que roubou uns bons minutos da minha atenção numa das salas do Museu das Belas Artes de Bordéus, que visitei por estes dias numa escapadinha ao sudoeste francês.

Alguns dos principais símbolos identitários da cidade estão representados nesta pintura, “Vista de Bordéus”, como a famosa Ponte de Pedra que atravessa o rio com os seus 17 arcos ou a Catedral de Santo André, que se avista à distância com as suas altas torres de inspiração gótica. Mas tendo passeado na frente ribeirinha do Garona minutos antes, foi impossível não pensar em como o centro histórico mudou com a inevitável passagem do tempo e as exigências do turismo.

À beira-rio, perco conta ao vaivém de navios cheios de turistas que se espalham pelas águas – agora mais turvas – do Garona. De câmaras fotográficas na mão, acenam para a Place de la Bourse, uma das principais praças da cidade, onde se concentram dezenas e dezenas de pessoas, todos os dias. O motivo? O maior espelho de água não-natural do mundo, que ali foi colocado e que se tornou numa das maiores atrações de Bordéus, ao espelhar a imagem dos palacetes em redor da praça. Trata-se de uma laje de granito com três mil metros quadrados, coberta por dois centímetros de altura de água, onde miúdos e graúdos aproveitam para correr e chapinhar. Por estes dias, ainda mais, como alternativa para refrescar do calor.

No espaço de poucos minutos, vi duas cidades diferentes, que são a mesma. Para o bem e para o mal, em todas as vantagens e desvantagens que tal acarreta, as cidades são um pouco como nós. A espinha dorsal pode continuar lá – os monumentos históricos aqui numa metáfora para os valores base que sempre nos regeram – mas as várias camadas que vão moldando a sua personalidade alteram-se com o tempo. Umas desaparecem, outras surgem, outras ainda regressam, e há as que mutam. E está tudo bem com isso.




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