Crónica de Inês Cardoso: cheira a eucalipto, cheira a casamento

(Fotografia de Sonny Sixteen/Pexels)
Na festa da Atalaia, junto ao mar, fui transportada num segundo para os lugares mais recônditos da infância, quando os casamentos nas aldeias eram festejados ao ar livre.

Da minha terra à pequena aldeia da Atalaia, colada ao mar revolto da Lourinhã, são quase 200 quilómetros de distância. E, no entanto, um simples cheiro consegue transportar-nos através do espaço e do tempo. Nos primeiros dias de setembro, passei pela festa da Atalaia seduzida pelas recomendações sobre as toneladas de marisco que por aqueles dias é servido no local. Ao entrar no recinto, o cheiro a eucalipto que o decorava tomou-me de assalto e transportou-me para os lugares mais recônditos da infância.

Quando era miúda, no Portugal profundo ainda a recompor-se das enormes desigualdades impostas por décadas de ditadura, os casamentos na aldeia do meu pai festejavam-se maioritariamente ao ar livre e a frescura do eucalipto, hoje espécie maldita, era escolhida para as coberturas que faziam sombra sobre as mesas de festa. Já pouco recordo dessas celebrações empurradas para o baú das memórias, mas o cheiro ficou, uma daquelas ligações automáticas a algo ou alguém.

É curioso pensar o quanto o país se transformou em três ou quatro décadas. Da demografia à educação, passando pela saúde e a cultura, um certo país muito fechado em si mesmo, analfabeto e marcado pela pobreza, abriu-se e globalizou-se, apesar das inegáveis assimetrias que subsistem e fazem com que haja muita diversidade de territórios dentro deste retângulo à beira-mar plantado.

Às vezes dizem-me que já não existem avós de mãos calejadas como as que me afagaram os sonhos, nem miúdos a pôr os pés na terra com a liberdade com que me sujei, nem aldeias com o cheiro a pão cozido em forno a lenha idílicas como as que continuam a habitar-me. E dizem-mo com convicção e sobretudo como um elogio ao país, como ode ao desenvolvimento e à mobilidade territorial, social e cultural.

Uma parte disso é verdade – e ainda bem, claro. Poucas pessoas nascidas numa aldeia escolhem ficar nela porque o mundo é pequeno e sem fronteiras, muitas tradições perdem-se por serem anacrónicas e desajustadas face ao que hoje sabemos, a mudança é sinal de bem-estar e de um conforto noutros tempos inexistente para milhões de portugueses.

Ainda assim, com a morte lenta do país rural perdem-se sensações e gestos que cabiam no meu conceito de modernidade. Talvez seja eu que me deixo enganar pela nostalgia, mas nunca mais encontrei, fora da aldeia, os dias cheios de plenitude e de proximidade que nos faziam ter sempre chão. A interioridade não é um lugar no mapa, porque pode estar à beira do mar ou nas margens de Lisboa e Porto. É a capacidade de salvar, na pressa com que caminhamos para o futuro, os pedacinhos de alma que nos tornam singulares.




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