Crónica de Inês Cardoso: a arte de não ter planos

(Fotografia: Pexels/DR)
Muitos dos nossos momentos de lazer estão carregados de objetivos e de expectativas, como se tudo na humanidade se tivesse transformado em corrida.

Há um curioso paradoxo na velocidade e na aceleração. Quanto mais nos sentimos cansados devido ao turbilhão dos dias, mais dificuldade temos em não fazer absolutamente nada. Pela lógica, pessoas exaustas e pressionadas a correr deveriam apreciar facilmente um momento desligado e simples no seu total esvaziamento. Mas a voragem tem um efeito tóxico, de certo modo viciante do corpo e da mente.

O vício sente-se inclusivamente entre os mais novos, desde pequenos habituados a oficinas e ateliês, atividades educativas, passeios, um sem fim de programas pensados pelos pais para os manter entretidos e para lhes proporcionar momentos pedagógicos. Qual é o plano?, perguntam-me muitas vezes os miúdos em dia de folga. Acontece, menos do que gostaria, conseguir responder com uma agenda despida de obrigações e de expectativas: “Nenhum”.

O mundo é enorme, os locais que vale a pena conhecer infinitos, e as agendas multiplicam-se nessa exata medida – folhear esta revista é um exemplo desse exercício. E, ainda assim, às vezes vale a pena ser um mau leitor. Ignorar os roteiros, esquecer as sugestões, resistir à tentação de querer ir riscando na lista real ou imaginária os itens do que não podemos perder.

Um dia inteiro de folga sem nada previsto pode parecer uma perda de tempo? Talvez, mas não fazer nada pode acabar por ser a forma perfeita de aproveitar um dia. Como já dizia Pessoa, na “Liberdade” em que contrapõe a naturalidade ao espartilho dos deveres,
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original,
e raramente o contemplamos livres de imagens e de preocupações, deixando-nos ficar como a brisa, essa, que
Como o tempo não tem pressa…

Há um prazer único em não ter planos, nem horários, nem procurar encantar-se com o que alguém disse que iríamos encontrar. Em sair à rua de olhos límpidos, sem vícios. Ou simplesmente em ficar enroscado no sofá, permitindo que o sol nos doire a memória.

Dou comigo a pensar que muitos dos nossos momentos de lazer, as nossas viagens e passeios, estão carregados de objetivos, como se tudo na humanidade se tivesse transformado em corrida. Como se até apreciar o belo ou saborear o que é bom fossem obrigações. Como se houvesse uma forma certa de visitar um local e sensações exatas a atingir, que não podemos falhar. Para sermos sábios no ócio, não precisamos de instruções. Só de sentidos. O tempo é o que mais os apura. Cada corrida só nos afasta da perfeição.




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