Crónica de Domingos de Andrade: filhos da terra

O Gaveto, em Matosinhos. (Fotografia: Pedro Granadeiro/GI)
São homens e mulheres que não venderam a alma e que a levam aos céus antigos, com as suas artes mágicas da memória, no vinho, na comida, na forma de receber.

Há pedaços de cheiros que se entranham e colam à pele desde a meninice. Levam-nos uma vida inteira nessa demanda, em assaltos que nos fazem sorrir como pequenos loucos, a tentar colocá-los em frascos pequeninos que queremos abrir de vez em quando.

Muitas vezes, vêm com sabores, fazendo a língua dar estalinhos como se estivesse cheia de petazetas, aqueles caramelos minúsculos carbonados muito populares nos anos 80 e que agora fazem os chefes cozinheiros brilhar de cada vez que os encobrem por entre as sobremesas.

São os cheiros levantados pelas chuvas de verão em terra acabada de arar. E uma mulher, que amamos muito e amaremos sempre, mesmo que esteja lá onde as almas se encontram, de avental novo para o sobrinho, ou filho, a criança é a mesma mas os sentimentos misturam-se como os cheiros e os sabores, a estender um prato de broa e outro de uvas tintas americanas. Gordas, gulosas, ainda resquícios de enxertias que serviram para combater a praga da filoxera que se abateu sobre a Europa em meados do século XIX. Haveriam de saber bem comidas e fazer mal depois de pisadas no lagar e mal fermentadas. Mas essas são outras dores que não cabem para aqui.

Desses lugares, embrulhados noutras vezes em pão onde se escavaram buracos com o dedo, nesses tempos em que a terra não fazia mal às mãos e era antissética, e se cobriram com azeitonas ariscas, da oliveira raquítica de solidão que sobreviveu até não poder mais, ainda sobram mineiros incansáveis. São homens, e mulheres, que não venderam a alma. Essa que dizem que andamos a vender nas cidades, derretidos perante o que nos salvou, e salva, o turismo, no Porto como em tantas outras terras moribundas por essa Europa fora, e que dizem que agora nos está a matar. Às vezes depressa.

São homens, e mulheres, simples, gente simples, que procuram na cidade o lugar das alminhas, os pequenos oratórios de culto às almas do purgatório, extinto por decreto papal, que nos deixou apenas o inferno do abandono, o fim dos linguajares, a extinção das vogais carregadas de acentos circunflexos e das vogais abertas. E que levam aos céus antigos, com as suas artes mágicas da memória, no vinho, na comida, na forma de receber, a babel que se espalha por vielas, ora a subir, ora a descer por entre ruas estreitas e secretas.

São esses mundos todos que podem caber dentro de nós, se os soubermos encontrar e acamar. A subir e a descer o Porto de nariz no ar à procura do que nos fazem a dona Maria, do Antunes, ou o Ernesto, ali para a Picaria, espraiando-se até ao sr. Manuel, do Gaveto, lá para os lados do mar de Matosinhos, indo Douro acima até encontrar o chef dos chefs, o Miguel Castro e Silva, mais o chef Rui Paula, que anda sempre rio acima, rio abaixo, ou os varandins do chef Cordeiro, indo depois para Sul até parar nos vinhedos bairradinos do Mário Sérgio ou do Carlos Campolargo e no que eles carregam de fotografias de família. Descobrir até onde pudermos. Tantos e tantos.

Sem perder a alma. Porque essa só se perde se a vendermos. E a alma só se vende ao Diabo.




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