Crónica de Carina Fonseca: um fato à medida para o ano novo

Fotografia: Pexels
Destralhar é criar espaço para o que nos serve e anima. É eliminar o excesso: roupas sem uso, mas também outros objetos e recordações já esvaziados de sentido. Que fique só o que nos cai bem.

Recentemente, passei uma semana a destralhar. O termo é-me hoje bastante familiar. Já antes de Marie Kondo se tornar celebridade eu lia e pensava sobre o assunto. Há quem ponha em causa o seu critério de seleção dos objetos consoante nos dão ou não alegria, e há quem nem perceba a vontade de reduzir o número de coisas em volta. Algumas pessoas preferem acumular peças, mesmo que não lhes deem uso, porque nunca se sabe quando podem vir a ser necessárias. Cada um retém o que lhe faz sentido – isso é válido também para as ideias.

Para mim, destralhar é eliminar ruído. Ter menos coisas significa passar menos tempo a escolher, a procurar, a arrumar, a limpar. Ter só algo de que realmente se gosta é, de facto, uma alegria. Adeus, tralhas. Lembranças de pessoas que saíram das nossas vidas e talvez nos magoem ainda, só de olhar para elas; livros e discos a que não voltamos e que podem fazer outros felizes; roupas que nunca vão à rua, por mais bonitas que sejam, ou que já não nos assentam bem, porque os corpos, como as cabeças, mudam.

Passei, pois, muitas horas a libertar coisas que já não me serviam, em múltiplos sentidos, procurando encaminhá-las para novas vidas, agradecendo, interiormente, o seu préstimo. Nessa tarefa, que me pareceu interminável (se calhar, é), encontrei uma grelha com notas do Ensino Secundário e recordei que a pior era, de longe, Educação Física. Sorri ao pensar como tinha desgostado tanto dessa disciplina e acabara enamorada do badminton, desporto que descobri só perto dos 30 anos, por pura necessidade de me mexer. Demasiado tarde? Eu só sei que fui e fiquei encantada.

Até hoje, vejo poesia no badminton e não esqueço regras básicas que me soaram como lições de vida. A primeira foi não olhar para trás – porque, se nos viramos, perdemos a jogada. Falar com o nosso companheiro num jogo de pares mistos também é conveniente, para sabermos onde nos situamos, evitar equívocos, perda de pontos e de sintonia. Raqueta à frente da cara é outra recomendação, para proteger olhos e dentes de um volante bem lançado – atinge grande velocidade e pode causar estragos. É bem-vindo tudo o que sirva para nos defender de ataques alheios (e mais vale que sejam frontais).

Começar a jogar badminton – mesmo que muito longe da elegância e eficácia daqueles que dominam a arte e parecem bailarinos sem esforço – foi iniciar um processo de aprendizagem sem termo, mas foi, sobretudo, reservar lugar para o entusiasmo, foi adquirir leveza, limpar a cabeça. Não interessa se me falta o movimento correto, se não faço o melhor uso da força ou se, de vez em quando, ainda perco tempo a olhar para trás. Certo é que viajo até um sítio onde, muitas vezes, não estou (não estamos): aqui, agora. A ver se não me bate um volante nos dentes, a ver se chego ao fim desta crónica dizendo o que queria, de forma clara, sem palavras a mais.

As viagens mais importantes são as interiores. E destralhar também é um recomeço. É ganhar espaço para o que nos anima, para o que nos fica bem, nem apertado nem largo, um fato à medida. Saibamos usá-lo no ano novo que se avizinha.




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