Crónica de Carina Fonseca: elogio do silêncio

Tranquilidade na Serra do Marão. Fotografia: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens
Música ainda é magia, máquina do tempo e alívio para as dores, e nada substitui uma boa conversa, de preferência, com riso solto à mistura. Mas saibamos parar e escutar o que nos vai dentro, que até passamos a compreender melhor os outros.

Longe vão os dias em que não guardava pausas para o silêncio. A aparelhagem estava invariavelmente ligada e, depois das aulas, ainda me pendurava no telefone a falar com amigas com quem tinha passado grande parte do dia. Na hora de estudar, substituía as guitarras elétricas por música erudita, e era só. Com o tempo, dei por mim a apreciar o silêncio, mais e mais. Fui deixando os discos em repouso, os telefonemas reduziram-se ao essencial, comecei a dar valor aos momentos que passava com as pessoas mais próximas, em presença, tanto a trocar impressões como confortavelmente calada. E que melhor exemplo de intimidade, não ser preciso dizer nada? Não ter de preencher cada instante com palavras, muitas vezes vãs, é um sossego a todos os níveis. Guardar a fala para o que realmente importa.

Claro que uma boa conversa não tem preço, e as canções continuam a ser máquinas do tempo com poderes balsâmicos. Mas precisamos mesmo de ter música e vozes de fundo em todo o lado, a toda a hora, seja deixando a televisão ligada, numa chamada telefónica em espera ou numa esplanada? Muitas vezes, procuro um café onde possa ler ou falar sem batidas intrusivas, até que desisto e vou para casa. O ruído é uma forma de escape, concluo. Não suportamos ouvir os nossos pensamentos, pode ser doloroso. Mas é uma liberdade tão grande quando os deixamos falar no nosso íntimo! Percebemos quem somos, o que queremos – ou o que não queremos, à falta de maior clareza.

Tive uma amiga que me abriu mundos. Lidava bem com a solidão e até precisava dela, porque estava em paz consigo (dentro do possível, para um espírito curioso e inquieto). Contou-me que, certa vez, fez uma viagem de carro com uma pessoa querida e foram sem trocar palavra. A dada altura, esse alguém interrompeu o silêncio e ela quase se assustou: tinha-se esquecido de que ia acompanhada, o que, para ela, era uma prova maior de conforto e sintonia. Nunca me esqueci de tal episódio. Achei-o bonito.

Anos depois, cruzei-me com o livro “Silêncio na era do ruído”, do explorador norueguês Erling Kagge, a confirmar o que já intuía: “Vivemos na era do ruído. O silêncio está em vias de extinção”. O autor, que foi o primeiro a atingir os três polos (o polo Norte, o polo Sul e o pico do Evereste), abordava o tema de vários ângulos. Observava até como o silêncio é privilégio dos mais ricos, que vivem em casas mais bem isoladas do som dos vizinhos, têm eletrodomésticos, automóveis e locais de trabalho menos barulhentos.

Basta pensar na quantidade de solicitações a que estamos sujeitos hoje, em casa e no trabalho (que, muitas vezes, nem são separáveis): toda a gente espera resposta imediata. Mea culpa. Sou jornalista. Em regra, queremos as coisas para ontem. Mas tento todos os dias encontrar espaço para refletir sobre o que me chegou de fora e, assim, prestar mais atenção a mim e aos outros. Se andarmos sempre em correria, em sobrecarga informativa, de ouvidos tapados por mil distrações, como saberemos o que é, de facto, importante – até mesmo urgente – fazer? Sempre que posso, silencio o telemóvel, desligo o rádio do carro e ponho-me à escuta.




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