Crónica de Ana Costa: Conversas de Café

(Fotografia: Orlando Almeida/GI)
Ainda me surpreende a facilidade com que tudo se conta e tudo se sabe nas conversas de café, à boleia dos comes e bebes, que sempre têm aquela forma singela de destravar as palavras.

O meu pai é um conversador nato. Qualquer ocasião tem potencial para que um ou outro assunto venha ao de cima e o faça perder-se no tempo, em entusiástica exposição dos seus pensamentos. Por isso digo com a maior sinceridade que não o conseguiria imaginar em melhor ofício. Ao fim de quase 25 anos atrás do balcão do café, lá na freguesia, ainda o vejo arrastar a pausa de almoço bem para lá da hora do lanche, porque a conversa está boa e nem a fome lhe demove a vontade de falar.

A minha mãe, recolhida aos afazeres do fabrico – trauteando distraidamente uma qualquer cantiga que nunca consigo decifrar -, entre o rolo da massa e a amassadeira, delegou-lhe desde o início a tarefa de atender os clientes. Afinal, o talento estava à vista e talvez até no sangue (o meu avô e bisavô eram merceeiros), denunciado pelo animado burburinho que se deixa ouvir para lá da porta a separar os seus dois domínios.

Na inocência da minha meninice sempre achei curioso o meu pai saber tantas coisas sobre a vida dos fregueses e sobre o que se passava na aldeia. E a razão por que as pessoas lhe contavam tudo aquilo era um mistério para mim.
Mais tarde vim a descobrir que existe uma vontade profunda no ser humano em partilhar o que sabe e em saber o que se passa ao seu redor. Era uma troca. Fundada na relação de confiança que se constrói entre o cliente e quem está ao balcão, semelhante de certa forma à de um penitente com o seu confessor.

Ainda me surpreende a facilidade com que tudo se conta e tudo se sabe nas conversas de café. À boleia dos comes e bebes, que sempre têm aquela forma singela de destravar as palavras, foge a boca dos assuntos religiosos para os prazeres da vida, da vida alheia para as decisões políticas, das colheitas para a inclemência do tempo. Tudo é tema. Democrático, note-se. Há conversas fartas, de boca cheia e outras mais corriqueiras. Mas tudo flui como um rio que vai abrindo passagem à medida que corre e toma caminhos ainda por explorar.

Lembro-me de certas personagens que sempre tomam parte na viagem. A Dona Rosa até de muletas faz o esforço de lá ir contar as peripécias do seu dia, narrativa regada amiúde por um copinho de verde. E o Carlitos traz sempre na ponta da língua uma boa anedota picante. Como em tudo, há exceções à regra, e o Manel Fininho, que a vida fez homem de poucas palavras, assiste no canto do balcão em silêncio, a mexer sem piedade o seu café cheio, cheiinho. Voam histórias, pensamentos e confissões, com mal-entendidos e enganos pelo meio também.

Saem uns, entram outros. O meu pai faz de mediador. Juntam-se novos intervenientes – é a forma mais elementar de uma rede social, parece-me – e a conversa nunca acaba. Porque não é das pessoas. É ela que as apanha e atrai para a sua dança compassada, de momentos adormecidos cortados por acesas discussões de sangue na guelra.
Um café é sempre mais do que um café. É um lugar-refúgio onde todos têm voz. Sem censura. Há nisso algo de belo. E à mesma medida inquietante: não há segredo que sossegue.




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