Crónica de Ana Costa: Aprender a gostar

Dióspiros na árvore. (Fotografia: JamesDeMers/Pixabay)
Desde que me recordo, sempre fiz cara feia a quem me oferecia um dióspiro. E agora que penso nisso, não sei bem porquê. Talvez seja altura de lhe dar uma segunda oportunidade.

Estes fins de semana de confinamento têm servido para pôr em ordem as colheitas e os cultivos do quintal. No outro dia, resgatei um punhado de dióspiros que se seguravam a custo aos galhos da árvore raquítica. Dióspiros de roer, note-se, daí a minha empatia para com eles. Os de comer à colher já não caem tão facilmente nas minhas boas graças. É, realmente, um fruto não consensual, como constatou uma amiga quando lhe contei deste meu desdém para com os dióspiros de polpa mole. Depois disso, pus-me a pensar, e conclui que, na verdade, não me recordo do sabor desse malfadado fruto. Alguma vez os comi, disso tenho a certeza. Costumavam alinhar-se na mesa de pedra de casa dos meus avós com a chegada do outono. Quando corrêssemos perigo iminente de levar com um dióspiro maduro na cabeça ao passar por baixo da árvore, a caminho da garagem, ou escorregar em alguma substância gelatinosa de um fruto já caído, sabíamos que era altura de os apanhar.

Alguns nem chegavam à mesa. Havia uma tia que se consolava em apanhar uma barrigada debaixo do diospireiro. Eu não compreendia aquele prazer. Desde que me recordo, sempre fiz cara feia a quem me oferecia um dióspiro. E agora que penso nisso, não sei bem porquê. Seria o sabor? A textura? Um mero capricho de criança? Ou talvez a inevitável sujeira pegajosa com que se enchia a cara? Não há maneira elegante de se comer um dióspiro de colher (nem mesmo com a colher).

Os figos eram outra dor de cabeça. A minha avó insistia, mas nem a doçura me fazia convencer. (Talvez fosse só esquisita.) Em contrapartida, lambuzava-me com as ameixas, as laranjas, as peras e as uvas americanas. Mais tarde, aprendi a gostar de figos secos e em calda. Às vezes, o segredo está aí. Precisamos de amadurecer para aprender a gostar de alguma coisa, ainda que menos do que gostamos de outras. Há que treinar o palato.

Quando mudámos de casa, uma das primeiras missões do meu pai foi encher o quintal de fruteiras. Assim por alto, conto umas cinquenta, seguramente, mas ele há de dizer que são bem mais. Quanto mais exótico fosse o fruto, mais vontade tinha de o juntar à coleção. Ainda estamos à espera que algumas das fruteiras produzam, como a árvore da anona – que a Internet me confirmou chamar-se anoneira. É uma alegria quando uma árvore dá o seu primeiro fruto. Por mais pequeno que seja, divide-se em partes iguais para que toda a família possa provar e avaliar a primeira colheita. Outras, até já produzem com fartura, mas nem sempre conquistam à primeira dentada. Este ano, por exemplo, tivemos uma avalancha de feijoas como nunca antes tinha acontecido. Seria pretexto para um festim, não estivéssemos ainda todos a tentar ganhar o gosto ao dito fruto. Em processo de aprendizagem, digamos assim. Eu e a minha irmã concordamos que cheira (e por extensão sabe) a naftalina, mas para não ferir o orgulho do plantador, nosso pai, acenamos ao comentário de que tem um leve travo a ananás. Fico aliviada por não ser a única com dificuldades para identificar o encanto desse fruto.

Ainda assim, estou a dar-lhe uma chance, e por isso mesmo sinto que injusticei os pobres dióspiros de comer à colher. Talvez seja altura de lhes dar uma segunda oportunidade. Quem sabe se estou a perder um dos grandes prazeres da vida.




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