Um passeio pelas novidades nas margens do Rio Zêzere

A paisagem que inspirou Alfredo Keill n’”A portuguesa” está de novo pujante. A imensidão das águas é agora ladeada por novos alojamentos e restaurantes, entre Figueiró dos Vinhos e Dornes.

O silêncio da manhã é entrecortado pelos pássaros, os muitos pássaros que cantam em coro, a anunciar o verão. Nesta altura do ano, quando a luz é mais clara, já não há só barcos de pescadores no Zêzere. Há os que voltam ao fim de semana para lhe tomar o gosto do passeio, do mergulho, do padel, da secreta pesca de lagostins. “Sabem o que é isto? Vejam lá se adivinham.” Miguel Campos aponta para umas bóias rudimentares envoltas num fio de corda azul. São as “gaiolas” que não tarda hão de regressar aos barcos de pesca e presentear os que gostam deste marisco do rio. Nenhuma é dele, que se dedica apenas ao passeio, há uma dúzia de anos, quando descobriu os encantos do Zêzere, juntamente com a família. Foi assim até à última primavera, quando este fisioterapeuta e a mulher, Florbela Leitão, professora, deixaram de ser apenas os habitantes de fim de semana da aldeia de Valbom, no concelho de Figueiró dos Vinhos, para se tornarem nos proprietários da mais recente unidade de turismo rural da região. “Com a pandemia apercebemo-nos do privilégio que tínhamos. E de como esta também poderia ser uma oportunidade de negócio”, conta Florbela, enquanto navegamos rio acima.

Campos River Houses. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

A piscina virada para o rio. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Deixamos para trás a Campos River Houses, a casa que já foi só da família e que agora está ao alcance de quem a quiser usar, usufruindo da envolvente. Não é só o rio, este ano recuperado da abundância das águas, depois da seca que no ano passado entristeceu e preocupou moradores e turistas. É também tudo aquilo que o casal se habituou a fazer, às vezes na companhia dos filhos ou amigos, e que agora recomenda, com propriedade. “É verdade que só o rio bastava (são 60 quilómetros navegáveis), mas há muitas coisas que por aqui vale a pena fazer”, enfatiza Florbela, cujas raízes em Setúbal sempre a mantiveram ligada ao mar, até descobrir o rio. E por isso não se cansa de apregoar os encantos desta franja do Pinhal Interior, que já recuperou o verde perdido nos incêndios de 2017.

Um dos quartos. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

A sala dos pequenos-almoços. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Spa naturista. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Aos hóspedes da casa recomenda sempre tudo aquilo que se habituou a fazer nos últimos anos: as caminhadas pela aldeia e pelos lugares vizinhos, o mergulho no rio, que gosta de atravessar a nadar. Os passeios de bicicleta, o padel, e mais recentemente o spa naturista, no meio da propriedade. Como sabia que nem toda a gente aprecia o rio para banhos, o casal apostou então numa piscina, no centro do jardim dado ao descanso e contemplação da paisagem. É ali, com o canto dos pássaros e o cheiro das ervas aromáticas cultivadas num canteiro, que acontece o mais belo amanhecer. Mesmo que cada um dos quartos permita – através de enormes vidraças – o vislumbre de todo esse verde a perder de vista, o jardim e a piscina são inigualáveis quando se trata de observar e saborear este pedaço de natureza.

O piquenique do Senhor Cozinheiro

É com alguns pés de lúcia-lima colhida ali mesmo que Tiago Antunes prepara uma infusão fresca, como forma de debelar o calor – que no verão é sempre muito e intenso. Há três anos que este engenheiro agrónomo resolveu dedicar-se à cozinha, com o mesmo empenho com que criou a marca Senhor Cozinheiro, dedicada à consultoria, mas também ao papel de chef privado, que gosta de encarnar. Tiago começou por criar uma página de receitas no Instagram, e de repente estava a ser requisitado para contar mais sobre o que fazia num programa de televisão. A partir daí a fama escalou. Fala à “Evasões” enquanto prepara o almoço que não tarda servirá na varanda da Campos River Houses, mesmo que isso pareça um passo de mágica. Afinal, chegou apenas com uma cesta de piquenique e ninguém acredita que dali sairá tudo o que é preciso para uma degustação completa: uma (surpreendente) entrada de morcela assada com citrinos e broa amarela, os peixinhos da horta, a salada de pimento assado e queijo, e ainda o pão regional recheado com queijo, enchidos e ervas aromáticas. De resto, usa-as em quase tudo, como na sopa de tomate assado e ovo escalfado. Para pratos principais, Tiago reserva o melhor do rio: filetes de lucioperca com broa e arroz negro em cama de espinafres; um bacalhau à sua moda; e uma costeletinha de cabrito grelhada com cuscuz de legumes. Tudo regado com uma sangria.

Chef Tiago Antunes, do Senhor Cozinheiro. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Salada de pimentos assados e queijo, morcela assada com citrinos e broa amarela e peixinhos da horta. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

“O meu objetivo não é distanciar-me do que é tradicional, mas sim dar-lhe uma nova cara”, explica, ele que se define como “um cozinheiro tradicional com um twist de diversidade e empratamento moderno”. Vale tudo, desde que quem prove consiga sentir no palato o sabor da comida da avó. Pedem-lhe sempre cabrito na maioria dos alojamentos em que trabalha, bem como lucioperca, o peixe do rio que ultimamente escasseia. Ainda assim, Tiago tem a vantagem de comprar aos tios, que são pescadores. De resto, quase todos os produtos com que trabalha vêm dali, das serras de Sicó e da Lousã, das margens do Zêzere. Utiliza sempre o que é de cada época, razão pela qual hoje serve um crumble de cereja e gelado, ao lado do tradicional arroz-doce. “Procuro reinventar doces que já caíram em desuso”, diz à “Evasões”, apontando como exemplo o bolo dos casamentos, que agora usa acompanhado de frutas.

Antes de cozinheiro, Tiago Antunes é um apaixonado pela sua terra e a sua gente. E por isso arranjou maneira de as mostrar aos visitantes, através dos piqueniques que faz, na Várzea de Pedro Mouro: atravessa o rio num velho barco de três tábuas (ver caixa) e dinamiza o parque de merendas com demonstrações gastronómicas. Depois, ainda arranja tempo para se dedicar à plantação de olival, contando que em breve terá a sua própria marca de azeite.

O postal ilustrado de Dornes

A viagem pelo Zêzere leva-nos sempre até Dornes, a aldeia-península onde já só moram 18 pessoas. Seja do rio ou da terra, esta que é uma das maravilhas do interior e do país há de sempre lembrar um postal.

Dornes. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Por estes dias está em obras a torre templária. Mandou-a construir naquela colina o cruzado Gualdim Pais, a partir de uma uma antiga torre romana, no século XII, para defender a linha do rio contra os mouros. A planta pentagonal da torre, pioneira no país, tornou-a um raro exemplar da arquitetura militar dos tempos da reconquista e ainda hoje impressiona quem a visita. Ao lado, outra beleza rara: o Santuário de Nossa Senhora do Pranto, cuja igreja remonta à Idade Média. Por ali, o padre Manuel Vaz Pato tem feito um trabalho notório de preservação. Quem o atesta é Jorge Silva, que voluntariamente é guardião do museu contíguo que alberga 44 círios, correspondentes a outras tantas paróquias dos distritos de Castelo Branco, Leiria, Santarém e Coimbra. Os mais antigos datam de 1825.

Para lá da devoção à milagreira Senhora do Pranto, a própria igreja, forrada a azulejo, merece visita, não apenas pela arquitetura, como pelo órgão oitocentista, ou os vitrais de 1950, da autoria do padre Nunes Ferreira.

Elizabete, Manuela e Helena Cotrim. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Cabrito com arroz de miúdos, batatas e migas. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Dornitos, as bolachas da casa. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Descendo à aldeia ribeirinha, cheira a peixe frito com arroz de tomate. É a imagem de marca do restaurante O Rio, que permite a experiência única de saborear cada prato com vista privilegiada para o Zêzere. A mestria é tripartida desde 2019 pelas irmãs Elisabete, Manuela e Helena Cotrim, cada qual com sua função. É Helena, a mais velha, quem mora na cozinha. Das mãos dela nascem as ovas de carpa, os cogumelos recheados, o cabrito com arroz de miúdos, batata assada e migas, ou as postas de barbo ou lucioperca fritos. Mas é sempre bom guardar-se para a sobremesa, pois que num dos festivais da abóbora nasceu a receita que é o doce da casa mais procurado: pudim de abóbora e noz. E para levar para casa, não há como resistir aos dornitos, as bolachas da casa.

Dos Alpes Suíços para as margens do Zêzere

No cruzamento entre os distritos de Leiria com Santarém e Castelo Branco, nem só de peixe do rio vive a região do Zêzere. Na aldeia de Portela do Bráz, concelho de Alvaiázere, ergue-se uma casa de madeira que faz lembrar os Alpes suíços. Não admira. Afinal, Valter e Isabel Morgado moravam lá, com os três filhos, até decidirem regressar à terra natal. Aconteceu em 2020. Tinha aberto há escassos dias o restaurante Chesery quando a pandemia lhes trocou as voltas. Mas retomaram a vida e têm vindo a conquistar o paladar da região e de longe.

Valter Morgado. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Peito de pato com rosti de batata. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

O que ali se prova é bem diferente das tradicionais carnes serranas ou do peixe do rio, mesmo que o faça por encomenda. Mas Valter, que é um autodidata grato ao antigo patrão, lá na Suíça, esmera-se no camarão salteado com legumes, no risoto de cogumelos marron, no saltimboca, no peito de pato com rosti de batata, e também no original pão, preparado e cozido ali, em modo simples ou na versão de manteiga de ervas. Ao domingo, faz sucesso o entrecosto de leitão. E também nos doces o casal surpreende sempre: gelatina de champanhe com frutos vermelhos, molotov de vários sabores e um doce da casa que junta morangos, gelado e suspiro. Como se não bastasse, o Chesery também oferece música ao vivo uma vez por mês. Mas o piano está sempre lá, para quem saiba e queira tocar. Do terraço vê-se um deslumbrante pôr-do-sol. E as serras, nas margens do rio que inspirou Alfredo Keil na letra do hino nacional.

Os cartuchos de Cernache

Silvina Ladeira aprendeu muito nova a fazer a doçaria típica de Cernache do Bonjardim. E apesar de uma vida inteira enquanto auxiliar de educação, nunca deixou de fazer os cartuchos, iguaria que eleva a amêndoa a outra dimensão. É numa pequena fábrica nas traseiras de casa que moram os Docinhos São Nuno. Mesmo aposentada, Silvina produz cartuchos para estabelecimentos da região. Na parede há diplomas dos prémios que já conquistou. No coração, a lembrança de todos os que lhe dizem que aquele é o melhor doce do mundo.

O último barqueiro

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

José Alberto é o derradeiro artesão de barcos de três tábuas (ou abrangel) típicos da albufeira de Castelo do Bode. É também um dos últimos habitantes de Dornes, onde a plaina ainda corre ligeira. Na oficina, à beira da estrada que liga a aldeia a Cernache do Bonjardim, é possível observar a arte do mestre, que continua a construir as típicas embarcações em madeira de pinho que noutros tempos serviam de transporte de pessoas e bens sobre água. Os barcos são construídos com três tábuas. Uma delas é dobrada até as extremidades se encontrarem. Por norma têm cinco metros de comprimento e demoram dois dias a construir.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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