Roteiro pela raia transmontana, uma terra de partilha

Rio de Onor (Fotografia de Maria João Gala/GI)
Viagem por um território singular e vasto, ainda adormecido, em que Portugal e Espanha se confundem. Os bichos (incluindo o Homem) e as tradições, a Natureza e a história de um lugar com “nove meses de inverno e três meses de inferno”.

“Parece que fugi aos Pretos”, diz Domingos, riso no olhar claro apesar da chuva intensa. É atrás dela que andámos há dias, um pé lá outro cá da raia, se olharmos para ela como um risco. Que não existe. Um território único, massacrado pela desertificação e unido pela força das suas gentes, pela vontade de atrair.

Domingos é Fernandes e por isso não é Preto. Preto era a mãe, Ana Maria, na verdade era Prieto, porque o pai Pedro (Fernandes, claro) “foi” à banda de lá do grosso cadeado buscá-la. Os anos tornaram-na Preto, a ela e a todos os que dos de lá descendem ainda que vivendo cá. Cá é RIO DE ONOR, unida a Rihonor de Castilla pelos prados na margem do rio, pelo casamento de tantos e, agora, pelos acordos de Schengen que tiraram o dito cadeado e o têm hoje na Casa do Touro feita Centro de Interpretação desta aldeia comunitária única.

Complicado? “Nós estamos habituados.” Palmilhámos esta região a convite de entidades portuguesas e espanholas unidas no projeto DuraDouro, que pretende valorizar o território através da cooperação transfronteiriça, e da iniciativa Territórios com Futuro. Rio de Onor parece-nos o melhor ponto de partida. Ou de chegada.

Rio de Onor (Fotografia de Maria João Gala/GI)

“Eu optei por esta Maria de cá”, conta Domingos da Maria dele, portuguesa de gema – ou se calhar não, que isto de não haver cá fronteira é história de séculos. “Era a única solução. Não havia carros” para ir a Bragança buscar namoro, nem para levar o gado, era a pé que se fazia, pois, “saíamos às 4.30 horas e eram umas seis ou sete horas, sempre em grupo”. E voltar. Domingos fala castelhano como português. Como muitos neste enorme território ainda adormecido.

Esta é uma história de mãos dadas, de gente que se ergue pelo território. E este território é uno, é a raia, é um abraço de duas línguas que se misturam e que se ajudam, porque por aquelas latitudes é normal entenderem-se. Domingos mistura o português de Rio de Onor com o castelhano de Rihonor, é a vida, é o casamento, a raia é um casamento, vamos lá ver o lado português, para onde os judeus fugiram da perseguição de Castela e onde se fixaram há 600 anos.

Arrancamos no PINTA (nome curto para Parque Ibérico de Natureza e Aventura de Vimioso) com a ideia mais bonita que vimos nos últimos tempos, lançar uma manta de trapos daquelas que povoam as memórias de casa da avó. Lança-se sobre uma erva tão fresca que Garbanzo se deleita lá adiante, no seu ruminar de enorme burro mirandês. Garbanzo tem 12 anos e é do Centro de Atividades Lúdico-Pedagógicas do Burro de Miranda, o ramo de São Joanico da Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino com sede em Atenor (Miranda do Douro) que se dedica a atividades com crianças e adultos com necessidades especiais.

Garbanzo é mesmo assim: passa 70% do tempo a comer, bebe 40 litros de água por dia, pesará uns 400 quilos e tem pela frente milhares de dias a esticar as gigantescas orelhas para escutar o que se passa na banda de lá da fronteira, porque estes bichos ouvem a sete quilómetros e sete quilómetros já nos põem em Villarino Tras la Sierra. É Damila Silva que nos conta isto tudo, ela que trabalha na associação que salvou o burro de Miranda da extinção. “Seriam uns dez em 2001. Hoje há criadores em todo o país, serão 900 a mil…” e meia dúzia deles até são “bombeiros”, porque a tarefa deles é roer e pisar a mata no monte.

Burros mirandeses (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Garbanzo, para que conste, é “grão-de-bico” em mirandês, mas grão-de-bico é coisa que não lhe assiste sequer. Há-o às paneladas sobre a manta estendida nas traseiras do PINTA, um dos nove locais recomendados pela iniciativa da autarquia de Vimioso. Trata-se de alugar a manta e contactar um dos restaurantes associados que cuidarão de cobri-la de tudo o que Trás-os-Montes tem de bom. E esta coisa simples de lançar mantas acabou por “relançar” mantas, com sangue novo a fazê-las em velhos teares.

De passagem, Cláudio do Rosário apresenta o PINTA, que reúne e explica esse melhor de Trás-os-Montes, os bichos (incluindo o homem) e as tradições, a Natureza e a história de um lugar onde se vivem “nove meses de inverno e três meses de inferno”. Com uma surpresa: numa das paredes exteriores há dois burros assinados Bordallo II. A prazo nascerá ali um lugar para observar o céu noturno, até lá é por ali que se encontram todas as informações sobre os vales dos rios Angueira, Sabor e Maçãs. E é ali que voltamos à nossa manta, cheiinha de grão-de-bico e salpicão e cozinhados caseiros do restaurante Autentisereia.

Estamos ali a comer no chão, mas podíamos fugir à georreferenciação e abancar em UVA, a beber “água de Uva” (que é melhor que a da vizinha Mora, lá saberão eles porquê) e a admirar os mais de 40 pombais em forma de ferradura que pontuam as encostas da aldeia desde tempos imemoriais e que ensinam (tentam…) aos homens a fidelidade pombalina – uma pomba fêmea nunca trocará de macho. A associação Palombar está por detrás do resgate destas construções e explica-nos tudo na velha escola.

A associação Palombar recuperou 40 pombais, em Uva (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Surpreendente pode ser a palavra para estas Terras de Trás-os-Montes, nome com que a Comunidade Intermunicipal resolveu apelidar-se. Junta oito municípios além deste Vimioso que nos acolhe e é ela que nos leva até um cantinho de Macedo de Cavaleiros, Cortiços, já Terra Quente, que Vimioso era a entrada para a Terra Fria, por muito que lhe demos voltas só os transmontanos saberão sentir essa divisão. E se é quente dá oliveira, que dão azeitonas, de que se fazem azeite (ou faziam) no NÚCLEO MUSEOLÓGICO DO AZEITE SOLAR DE CORTIÇOS. É uma história de amor e de família que aqui se conta, os Sá Miranda Patrício, Bernardo e Paulo, irmãos que recuperaram o lagar fechado desde 1953, ano em que deixou de cheirar a “inferno”, que era a água da decantação que seguia num aqueduto para longe deste centro de uma aldeia que foi vila e sede de concelho e hoje terá 80 habitantes.

Diz-se de Cortiços que era ou é “a aldeia mais comunista do Nordeste Transmontano”, que depois do 25 de Abril ocuparam o casal do engenheiro agrónomo Camilo Mendonça (que pensou a barragem do Azibo e dezenas de outras para tornar o Nordeste Transmontano apetecível para a agricultura e a vida), ou que ocuparam, afinal, terras sem produtividade que puseram a render para benefício da aldeia, sofreram perseguições e represálias, que ali montaram a cooperativa Os Pioneiros, continuaram a sofrer perseguições e represálias e foram desalojados pela lei do ministro da Agricultura António Barreto (1977), a Lei Barreto que pôs fim às ocupações da reforma agrária.

Solar de Cortiços (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Cortiços é terra de partilha, está visto. É a porta de entrada para a Mata do Quadrassal, “a Sherwood de Trás-os-Montes”, assinala Sónia Lavrador, que tem raízes ali. Seria floresta tão densa que servia de esconderijo a meliantes. A vida e a bolsa de quem se atrevia a atravessá-la era salva pela “generosidade”: tratava-se de deixar o que quer que fosse nos chapéus que os ladrões pousavam na beira do caminho, uma moeda ou um cigarro.

Na realidade, é a maior mancha de sobreiros da Península Ibérica e acolhe parte dos 200 quilómetros de trilhos cicláveis que arrancam dos Cortiços e da sua antiga estação de caminho-de-ferro na defunta linha do Tua. A modernidade da palavra contrasta com o lugar, uma estação morta no silêncio do vento a soprar nas árvores e um centro da rede Cyclin’Portugal, com tudo o que podem precisar aventureiros em duas rodas.

Podence (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Macedo segue território adiante, longe de lendas e ladrões, e estaca em PODENCE. Sim, o lugar dispensa apresentações. É a terra dos caretos e da arte de rua levada ao máximo expoente por Ricardo Dobrões, vulgo Trip Dtos, do Carnaval e dos moços atiçados pelas hormonas, dos chocalhos e das caras mais feias possível, dos excessos cíclicos feitos Património Imaterial da Humanidade, dos rituais de fertilidade do chão e das jovens, “as moças mais afoitas, as mulheres voluntariamente desatentas e as velhas risonhas e nostálgicas” (descreveu em 2010 o antropólogo Paulo Raposo) e de Sofia Pombares.

Tem 24 anos e a arte na ponta dos dedos há seis, numa oficina belíssima onde convida os curiosos e “pintar a máscara”. São máscaras de caretos, de latão ou de couro, são máscaras belas de feias, vermelhas e negras, que ela aprendeu a pintar com o marido e continua a pintar dias fora, quando não passa para o tear que recuperou para tecer as mantas de que se fazem as vestes, calças e casaco, do dito diabo. “Um metro demora duas horas a fazer” e vestir um careto leva seis metros, depois é preciso fazer as famosas franjas de lá, outro cabo dos trabalhos num tear mais pequeno, depois a máscara e os chocalhos, criar um modelo inteiro dá para um mês de labor e 900 euros de rendimento. Uma peça tão valiosa que passa de geração em geração, desde que se sabe dos caretos e de Podence e do entrudo chocalheiro. Estudava enfermagem, Sofia, e largou a formação. Formou-se sim, no tear. Tinha de ser. “Faltava alguém que soubesse, porque as pessoas antigas não partilhavam o enfiamento…”

Podence (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Não deixar que o território morra. Parece ser o desígnio de todos estes jovens que vos vimos contando, a maioria mulheres e isso é bom. Ângela Santos é mais uma, macedense, apaixonada pela terra (pela água dela), pela matemática e pelo marido, Vítor, que a fez sonhar com projetos. Havia, aos pés deles, uma albufeira incólume porque inviolável, foi feita assim, na senda do engenheiro visionário de que já falámos, para fornecer água para a população e para as terras. Queria isto dizer que não podia ali navegar qualquer barco. Até que alguém, em Portugal, criou barcos solares.

Anos de processos e aprovações depois, a SUN AZIBO lançou-se aos 400 hectares da albufeira no mais absoluto silêncio daquelas margens de pré-história geológica (estamos no epicentro do Geoparque Terras de Cavaleiros, olhamos rochas vulcânicas com mais de 400 milhões de anos, de quando tudo isto era um continente só, Pangeia), já Ângela perdera Vítor para a doença e captara Acácio, o irmão mais novo, para o leme. Ao som dos pássaros e do tilintar dos copos em que nos servirá um aperitivo com o bolo de cenoura da mãe, Ângela emociona-se, o barco chama-se Vítor, claro, e navega até oito horas sem sol se for caso. É como que um filho para ela, um filho que quer partilhar com quem quiser apreciar a paz do “oásis transmontano”, ver o pôr-do-sol, ali ou do ar, de um avião, numa das várias parcerias com outros agentes locais. Uma delas é com Sofia e as suas máscaras. Porque a união faz a força.

Sun Azibo (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Domingos já não precisa do ouvir o encaixe do garabelho para abrir a CASA DO TOURO, que é centro de interpretação de Rio de Onor e da sua vida comunitária. Já não há dessas fechaduras, nem touro. Nem vacas para o touro cobrir. “Chegou a haver aqui 200 vacas” e por isso é que havia um touro comunitário para tratar delas. Tudo era cuidado assim, em comunhão, com uma vara da justiça para marcar as presenças dos chefes de família no conselho de aldeia ou assinalar-lhes as falhas e cobrá-las em vinho, o “vinho das faltas” que se bebia nos trabalhos comunitários. É vizinho do museu, abre-o porque chove a cântaros e o cocktail ao pôr-do-sol organizado pela Aventura Norte e pelo Mr. Bartender teve de acontecer dentro de portas. Ainda bem. Em vez do sol ganhámos Domingos, que é daquelas pessoas que poderíamos ouvir para sempre.

Conta os votos que eram pedras de ardósia riscadas ou não atiradas para dentro de um chapéu, conta os 1400 quilos do touro, conta o pai, Pedro, o homem das fotografias e dos filmes do museu, porque foi um dos mordomos de Rio de Onor que, insiste ele, não é nome de rio – os seus 78 anos ensinaram-no a chamá-lo Contense. E, insiste também: “Não escreva, por amor de Deus, que o rio marca a fronteira”. Porque o rio é a união com Rihonor de Castilla e ambas, de mão dada e sem cadeado e com rebanho comum, somam umas 70 pessoas, muitas de uma mesma família nascida de um casamento de antanho. “Já há muitos anos que não acontece um casamento assim”.


Vem aí o primeiro Festival do Careto

Não é um Carnaval de verão, mas promete chocalhos, chocalheiros e chocalhadas. E, claro, tabernas. O primeiro Festival do Careto acontece de 28 a 30 de julho em Podence, misturando música tradicional e atividades variadas, muitas semelhantes aos dias de Entrudo, mas muitas outras a decorrer também no Azibo, incluindo passeios a pé e de barco, workshops de máscaras e “a experiência de ser careto”, parceria entre a Associação Grupo dos Caretos de Podence, a Junta de Freguesia de Podence, a Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros e os Bombeiros Voluntários.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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