Leiria regressa a 1938 com o ‘enterro do bacalhau’

A tradição recorda o tempo em que a Igreja proibia o consumo de carne na Quaresma, no século XVI. (Fotografia de Reinaldo Rodrigues/GI)
Oito anos após a última edição, o Soutocico, no concelho de Leiria, volta a dar vida ao “Enterro do Bacalhau”, espetáculo de teatro de rua com raízes em 1938 e que pode atrair até quatro mil visitantes, avança a organização. Acontece dia 6 de abril.

Oito anos após a última edição, o Soutocico, no concelho de Leiria, volta a dar vida ao “Enterro do Bacalhau”, espetáculo de teatro de rua com raízes em 1938 e que pode atrair até quatro mil visitantes, avança a organização. O espetáculo comunitário e pagão vai realizar-se no dia 6 de abril, envolvendo acima de 280 figurantes, dos 4 aos 85 anos.

Habitualmente realizado a cada quatro anos, o “Enterro do Bacalhau” do Soutocico, aldeia da freguesia do Arrabal, a sete quilómetros de Leiria, regressa depois do interregno imposto pela pandemia e, por isso, esta será uma edição com sabor especial, explicou à agência Lusa a presidente do Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico, Sílvia Brites.

“Há bastante entusiasmo, as pessoas estão muito motivadas e querem participar. Entre a organização já não fazemos isto há oito anos, é muito tempo. O ‘Enterro do Bacalhau’ é o nosso ‘ex-líbris’, é o nosso bebé”. Se a meteorologia ajudar, “teremos aqui entre três e quatro mil pessoas”, antecipa a responsável, sobre o número de visitantes. “A última edição foi em 2016” e “há muita saudade nas pessoas”.

O “Enterro do Bacalhau” do Soutocico arranca no sábado, às 17h, com o Festival Gastronómico do Bacalhau, em que são servidos pratos produzidos com bacalhau. A peça de teatro de rua começa às 21:00.

A tradição, recorda, começou em 1938, representando o tempo, no século XVI, em que a Igreja proibia o consumo de carne na Quaresma – a menos que se pagasse a Bula. Em alternativa, o povo, menos abastado, alimentava-se de bacalhau, “na altura o peixe mais barato”. “Passadas as sete semanas da Quaresma, fazia-se o enterro do fiel amigo que lhes tinha ajudado a matar a fome às famílias”, conta Sílvia Brites.

Com uma traição e denúncia às autoridades pelo meio, o “Enterro do Bacalhau” do Soutocico inclui o funeral e enterro, de facto, do bacalhau, “com coveiro e tudo”. E há três sermões que lhe são dedicados: Vida e morte, Testamento e Exéquias. “Os textos são atualizados todas as edições para conter crítica social – e estamos numa altura bastante profícua em notícias, temos muito material! Na verdade, é um funeral, mas é para rir, tem sempre algum sarcasmo, alguma ironia”, nota a organizadora.

Até ao enterro, há um cortejo pela aldeia, com cerca de 1,5 quilómetros, que inclui atores e figurantes a interpretar padres e freiras, pescadores, varinas, padeiros, bombeiros, carpideiras, entre outros. A filarmónica do Soutocico e elementos da banda do Arrabal e outros músicos interpretam a marcha fúnebre de Chopin. A peça termina com o “Julgamento de Judas”.

No Soutocico, o teatro de rua começou em 1938, mas foi rapidamente proibido pela ditadura e só regressou em 1977, “embora em moldes diferentes”. E voltou a ter problemas: a Igreja Católica foi contra a representação de padres, freiras e até um bispo na festividade pagã. “O padre dizia na missa: ‘É o Enterro do Bacalhau, mas os católicos não vão. Fechem as portas, as janelas e não vão’. Era mesmo complicado”, lembra Sílvia Brites. A filarmónica do Soutocico chegou “a ser excomungada por participar num teatro de rua. Foram tempos complicados”.

Ultrapassadas as dificuldades, alterada a data e estabelecidos canais de comunicação com a Igreja, o “Enterro do Bacalhau” do Soutocico é, hoje, “um orgulho muito grande” para quem habita a aldeia. “Todos nós queremos muito manter esta tradição viva”, estando até a ser ponderada a candidatura da festividade ao Inventário do Património Imaterial Cultura.




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