Já dava livro, a carreira que a chef Ana Moura carregou de estudo, muito trabalho e talento. Nasceu com o brilho da verdadeira inteligência, que lhe permite ver o âmago das coisas e esse é o fio condutor da vida profissional que escolheu. Vocação ligeiramente tardia, mas que chegou ao peito com todo o tempo do mundo, sentiu que devia calcorrear o caminho desde o princípio, na escola de hotelaria. Os postos por onde passou são a sua constelação, nada no seu caminho tinha alguma vez sido visitado, o que nalguns momentos seguramente a fez sentir-se insegura e só, apesar de sempre autónoma. A empresária Susana Almeida e Sousa tinha no seu próprio mapa astral a criação de um restaurante dedicado ao bacalhau, a figura e a forma encontrou-a em Ana Moura e nasceu a Bacalhoaria Moderna.
A exploração começa no original e petisqueiro couvert (3,50 euros), composto pela proverbial manteiga, um exemplar pastel (bolinho) de bacalhau e brandada do dito, particularmente bem puxada, cremosa e texturada como se pede. As entradas evocam a prática do petisco e cumprem bem, o tártaro de bacalhau com vinagrete de mostarda (12,50 euros) oferece-se contudo com uma sofisticação inédita, que repetimos sempre. Brilhantes as línguas de bacalhau com gema de ovo (13,50 euros), delícia histórica declinada em abordagem moderna e com recorte técnico irrepreensível. Inesperado, mas bem-vindo o polvo assado com pickles e abóbora assada (13,50 euros), muita arte ibérica ribeirinha, que Ana Moura declina como ninguém.
Os pratos de bacalhau tocam os clássicos do fiel amigo e renunciam à monotonia, todos são patrimoniais, mas disparam para fora da atmosfera normal. O cachaço de bacalhau com couves, estragão e tomate (16,50 euros) tem o travo e textura da couvada e vai muito mais além, com as alternâncias que propõe. O vezeiro bacalhau com grão e broa (16 euros) que se faz aqui tem tudo o que um português precisa para ser feliz, mesmo aquele que não morre de amores pela forma clássica súmula de peças disjuntas. O exercício culinário é de todos o mais conseguido do cardápio, justamente por ser tão próximo do convencional. Requintado, mas curiosamente sentido na prova como se sempre tivesse existido, o bacalhau com alho-francês, chalotas e molho de galinha assada (16 euros), impossível não sorrir enquanto se explora.
Há um bacalhau à Brás (15 euros) que merece conferência e claro que é à Moura, como tudo o resto, sente-se e admira-se a forma da chef Ana abordar um clássico do bacalhau que é normalmente o mais aviltado. Aqui preservou-se-lhe a alma, e é isso que nele apreciamos. Para quem não quer bacalhau, é moção e capítulo na singela ementa do Bacalhoaria Moderna, e claro que em duas das três visitas pedimos o leitão confitado com batata e salada de espinafres (16,50 euros), delicioso e atrevido como tudo o resto. Sempre que um português se senta à mesa e vem travessa ou prato da tradição, o jogo que logo se monta é o de achar que se sabe fazer ou melhorar, e neste restaurante único é muito assim. Só que tudo o que aqui se faz nunca se fez, nunca tivemos bacalhau assim.
A refeição ideal
Tártaro de bacalhau com vinagrete
de mostarda (12,50 euros)
Polvo assado com pickles
e abóbora assada (16 euros)
Açorda alentejana de bacalhau (14,50 euros)
Leitão confitado com batata
e salada de espinafres (16,50 euros)
Torta de laranja, moscatel e rum (6 euros)
Longitude : -9.150042299999996
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