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Crónica de Ana Luísa Santos: Gravar memórias

(Fotografia: Maksim Goncharenok/Pexels)

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Quanto mais velha fico, mais percebo a importância do nosso baú mental, a que chamamos “memórias”. Somos moldados por elas. Gostamos de voltar onde fomos felizes, seja à boleia de um prato, uma fragrância, uma canção; olhamos com carinho para certas fotografias; conversamos horas sobre o que já passou. Por outro lado, marcamos viagens, piqueniques, jantares e fazemos atividades fora do habitual para “criar memórias”, como agora se diz.

Nos últimos anos de trabalho na “Evasões”, têm-me falado amiúde em “cozinha de memórias”, ou seja, pratos que evocam recordações ao nível do paladar. Disse-o o chef Henrique Ferreira relativamente às broinhas doces, feitas por senhoras de Santar com o resto da massa da broa, à qual juntavam açúcar e canela, para oferecer às crianças depois da escola. E disse-o Andreia Santos – que, ao lado de Jerónimo Pinto Abreu, gere o restaurante vegan Lupin – relativamente ao rancho, isento de proteína animal, que estava a sair no sábado. Como praticante de uma dieta quase vegetariana, procuro muitas vezes o conforto das receitas da minha infância em recriações isentas de carne ou peixe. Outras vezes, acabo a criar memórias, às quais me apetece voltar vezes sem conta, como um jantar no restaurante Seiva com as criações coloridas e apaladadas do chef David Jesus, ou o brunch de inspiração francesa da pasteleira Marthe Lemoine na My Green Pastry.

Posto isto, fiquei um pouco inquieta quando li, recentemente, uma notícia intitulada “Estamos a construir menos memórias porque fotografamos tudo e mais alguma coisa?” no site da CNN Portugal. No artigo da jornalista Daniela Costa Teixeira, Filipe Palavra, neurologista e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia, refere que esta necessidade de fotografar em massa retira robustez ao processo de construção de memórias, impactando a atenção, um aspeto determinante para a criação das mesmas.

Estará a minha geração a caminhar para um futuro onde não se lembrará de nada? Terá milhares de registos fotográficos, guardados em terabytes, mas será que vai recordar a companhia desses momentos, os cheiros, os sabores e as músicas, com a clareza que a minha avó ainda relata as traquinices e os bailes da sua juventude? Ou teremos apenas aquele auxiliar de memória visual enquanto tudo à volta se dissolveu?

À medida que caminho para esse futuro, esforço-me por estar onde estou. Não tenho imagens do único festival de música a que fui este ano e nunca partilhei nas redes sociais imagens de uma das viagens mais especiais que fiz. As memórias, essas, estão bem guardadas. Que nunca me faltem as palavras para as partilhar.