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Crónica de Ana Costa: Conta-me uma história

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Gosto de histórias. Contadas de todas as formas. Mas principalmente das que entram pelo ouvido, desfiadas na cadência de uma voz que é tanto narrador como personagem. Gosto que sejam imperfeitas, com a desordem própria do que é espontâneo, dos avanços e recuos, da sinceridade da palavra falada.

Quando era miúda, sentava-me ao lado do meu pai no carro todas as noites no regresso a casa, depois de fecharem o café. As viagens eram quase sempre embaladas pela sua voz cansada mas firme, a dar resposta ao meu pedido habitual: “Conta-me uma história de quando eras pequenino”. E apesar de já conhecer todas de trás para a frente, era como se as ouvisse pela primeira vez. Aquelas aventuras eram contadas com um tom algo cinematográfico, em que o meu pai era o personagem principal, muitas vezes o autor de peripécias repreensíveis, como entrar às escondidas na mercearia do meu avô para beber jeropiga da pipa, ainda em tenra idade. Aprendi a engenhosa forma como cozinhavam os couratos em salga em cima de candeeiros a petróleo, faziam carrinhos de rolamentos e esculpiam barcos na casca de pinheiro-manso.

Do meu avô tinha outro desfile de contos, da altura em que conheceu a minha avó, de andar de bicicleta de campo em campo, a trabalhar a terra, dos tempos em França, das traquinices dos meus tios e da minha mãe. Ainda hoje recorda a viagem de comboio que fez com a minha avó, já reformados. Pararam em Aveiro, gostaram muito. “A tua irmã ainda está para lá não está?”, pergunta a meio do discurso. Não me importo com a interrupção. Regressamos ambos ao presente.

No autocarro e no comboio, acontece-me com frequência algum passageiro conversador – ou com necessidade de desabafar – achar que tenho cara de boa ouvinte e desfiar toda uma história de vida. Apenas tenho de acenar com a cabeça, sorrir com os olhos por cima da máscara e ouvir.

Gosto de histórias. Das verídicas, mais do que das inventadas. Quando falo com pessoas que já correram o mundo e viram coisas que eu talvez nunca vá ver, ou com quem já viveu toda uma vida e partilha comigo memórias que guarda como relíquias, enche-me o peito, eleva-me o ânimo. Ver o mundo, ou um pedacinho dele, pela lente de outra pessoa é um privilégio, uma oportunidade de nos fazermos mais tolerantes e humildes, de compreender que existe uma infinidade de visões e modos de viver válidos. Faz-nos renunciar à arrogância de achar que a nossa forma de encarar o mundo é que está certa. Por isso espero que continuem a contar-me histórias por muito tempo, para que possa ver o meu mundo com cada vez mais cores.

Tudo isto serve para dizer uma coisa: dos prazeres que esta profissão me dá, poder ouvir as histórias das pessoas com quem me cruzo é o maior de todos. Talvez já estivesse escrito algures, nos capítulos desordenados do destino.