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Arroz de sarrabulho: em caso de dúvida, vá pelo sabor

Percorra a fotogaleria para conhecer os quatro restaurantes onde a estrela é o arroz de sarrabulho com rojões. Textos de Dora Mota
Encanada Mesmo que tenhamos almoçado antes e que Rosa Martins nos traga uma travessa de arroz de sarrabulho às quatro horas de uma tarde abafada, sucumbe-se. Aquele aroma faz ligação directa à torre sineira do cérebro onde se guarda o prazer de comer. E toca a rebate. A senhora franzina, delicadíssima nos modos, fora maternal: as travessas de rojões e sarrabulho são postas sobre uma toalha branca com flores azuis bordadas. E a seguir, uma taça redonda de leite creme, como um pôr do sol. E que sol tinha na composição, pelo que deu luz ao paladar. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
Encanada Foi entre garfadas que esta cozinheira de penteado e manicure impecáveis, baton vermelho e um sorriso gaiato nos resumiu quem é: «Nasci na restauração, com os meus pais que tinham uma tasca e faziam petiscos na vila». Quando o pai emigrou para o Brasil, Rosa foi trabalhar com a madrinha, no restaurante Gaio, que fica um pouco acima do seu Encanada. Aprendeu com estas mulheres da família a receita complexíssima de ingredientes escolhidos a dedo, contracenas de cozeduras, empratamento impressionista. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
Encanada Ao fim de duas ou três entrevistas, percebe-se a teia de parentescos em redor dos rojões do sarrabulho, já que todas estas cozinheiras são frutos da mesma árvore de sangue e ensinamentos culinários. Depois de casada, tomou conta da Encanada há 50 anos e, aos 74 anos, continua a coordenar uma equipa familiar no torreão branco tão conhecido em Ponte de Lima: um irmão, três filhos e dois netos, cada qual em sua função. Há 10 anos, ainda tinha consigo a mãe. «Fez o sarrabulho até aos 90 anos». (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
O Açude Há muitas entradas, mas convém não nos enchermos com elas. «O sarrabulho é um prato que se deve comer com fome», diz João Lima, o homem com duas vidas. Uma ali de sentinela à cozinha d´O Açude, o restaurante de madeira em frente ao rio, com viagens diárias às lotas. A outra, a pastorear almas nas paróquias da montanha que dali se avistam – sim, este homem desembaraçado, com a traquina pronúncia do Alto Minho, também é padre. Será da herança de São Pedro esta devoção pelo peixe fresco? (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
O Açude Mesmo apontado como referência de sarrabulho, João Lima assinala que procurou n´O Açude privilegiar o peixe fresco que, naquelas bandas, perde espaço para os rojões, o cabrito, a posta e o bacalhau. De tudo isso também ali há experiência, assim como alguns pratos populares como o escabeche e o arroz debulho (feito com as ovas do sável). (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
O Açude Quanto ao sarrabulho, diz-nos ser mais leve do que o habitual, o que se confirma. «Este sarrabulho pode ser servido a doentes», avisa. Os rojões tenrinhos, em pedacinhos pequenos – dimensão essencial para que absorvam temperos e temperatura. A garrafeira é uma joia da coroa, climatizada, e com mais de 300 referências. Nas sobremesas, destaca-se nota do humor de João: há pudim Abade de Priscos e pudim Prior de Miranda, este mais raso e cor de vinho. O outro abade é de Braga, o prior é ele mesmo. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
A Carvalheira Esta propriedade nos arredores da vila, na estrada que vai para Braga, parece um hotel rural, com jardins cuidadíssimos, um casarão restaurado de novo, grandes portões. Mas é um restaurante e tudo o resto advém do gosto de José Gomes pelo primor. Experiente na restauração, ramo em que trabalha desde os 14 anos, comprou a quinta e para ali transferiu há três anos A Carvalheira, até então em Arcozelo. Os rojões com sarrabulho brilham entre outras estrelas não menos brilhantes da carta, que é a mesma há muitos anos: bacalhau com broa, pernil assado, cabrito. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
A Carvalheira «A Carvalheira nasceu com a cozinha tradicional e continua, a nossa ementa é fixa e nunca mudou em 23 anos», sublinha João Gomes. A razão é simples: se um cliente se recordar dos sabores e quiser voltar, reencontra sempre aquilo com que sonhou. Acontece muitas vezes. Os cozinheiros que entram de novo, aprendem a fazer tudo da mesma maneira: «Nós é que temos o segredo das receitas», afiança João, que tem como parceiro na casa o seu filho Ricardo. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
A Carvalheira O sarrabulho é uma das lições que é necessariamente dada a quem ali aparece, não é coisa de escola, mas de comunidade e família. «Todas as pessoas que passaram na cozinha em formação nunca sabiam fazer um sarrabulho», diz João Gomes. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
Manuel Padeiro Esmeralda de Sá Pires tem 85 anos e cozinha arroz de sarrabulho desde que se lembra: a receita e o saber fazê-la vai na herança das moças limianas, como outro enxoval qualquer. A matriaca já não trabalha, no sentido propriamente dito do termo, porque pode entregar o trono do fogão, em confiança, à filha Manuela. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
Manuel Padeiro A filha cozinha todos os pratos tradicionais que compõem a carta do restaurante com 60 anos e, a avaliar pelo ambiente de sorrisos espontâneos, também cozinha alegria no trabalho. Esmeralda demora-se a soletrar o adjetivo, que pontua com a cabeça - «A minha filha é boa cozinheira». Mas passa ali os dias, ainda, e tão delicioso como comer o prato opulento que Manuela nos traz, é escutar a sua mãe descrever, com palavras, gestos, trejeitos e maneios de voz, como se faz um bom sarrabulho. Não perdoa nem uma falha na cadeia de minúcia, que a filha sabe de cor, declamando, após pedir à mãe licença com os olhos. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)
Manuel Padeiro «As carnes têm de ser bem cozidinhas. A calda coada vai para o arroz, o molho dos rojões vai assar as batatas». As belouras e as sarrabulhas são feitas na casa e Manuela, ao trazer as travessas fumegantes, pode gabar-se de ter herdado o melhor dos enxovais. Esmeralda enterra um garfo no arroz caldoso sem hesitar, erguendo-o a pingar fiapos de carnes, entre um fumo de aromas: «Isto é um sarrabulho como deve ser». (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)

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Como sempre no que é da chamada cozinha tradicional portuguesa, a confusão instala-se facilmente e não permite chegar à autoria nem aos pratos contados na primeira pessoa. Talvez não seja mau, mas eu tenho uma enorme pena da gigantesca ausência de registo dos gigantes da nossa cozinha. Assim como tenho muita pena de não ter conhecido algumas pessoas que sem querer construíram o nosso património culinário. Já consigo conviver com a falta do menu da Última Ceia, mas continua insustentável que os cenários de há menos de um século sejam ainda tão difusos. Começa pela expressão “é de sempre”, que aceitamos tacitamente e rapidamente chegamos às receitas com a mesma classificação, sem sequer terem sido fixadas com registos, quantidades e modos de preparação. Para imediatamente a seguir se instalar a tirania do que supostamente é o verdadeiro prato, original, com o corolário da advertência “cuidado com as imitações”.

Maria da Lourdes Modesto demonstrou a grandeza de alma que todos entretanto lhe reconhecemos ao longo dos anos ao ousar lavrar em livro e receituário organizado a forma portuguesa de cozinhar. Chamou-lhe tradicional porque foi assim que entendeu chamar ao que absorveu das muitas proximidades familiares que desenvolveu; ao muito que soube ouvir; ao tanto que provou. Seguindo de perto o que era de sempre, criou e partilhou uma nova leitura de tudo, desde o tempero mais simples à concretização mais complexa. Dá gosto ler e é de gosto que devemos sempre falar quando o assunto for comida. E na dúvida, vamos pelo sabor, ou seja sentamo-nos à mesa de quem executa as receitas mais credíveis e provamos. As vezes que for preciso, até conseguirmos a autonomia que nos permite entre outras produzi-las nós próprios em casa. Por muitos restaurantes que existam, é em casa, na mesa dos portugueses, que o fenómeno da tradição se dá e preserva. E é pelo sabor que vamos.

Em Ponte de Lima, não é de papas de sarrabulho que falamos, é de arroz, e sempre – ou quase sempre – acolitado por rojões

Atento ao aspeto patrimonial da cozinha tradicional do Alto Minho, Francisco Sampaio dedicou muito do seu tempo a um levantamento semelhante no efeito e originalidade ao labor de Maria de Lourdes Modesto. Com a vantagem evidente das suas responsabilidades na região turismo, ligando, por assim dizer, as pontas entre si. Ponte de Lima tem uma mesa notável e abençoada. Rica e festiva por um lado, profundamente popular por outro. Já não vamos a tempo de nos sentarmos à mesa de Belosinda Varela, mais conhecida por Clara Penha, mas agradecemos a bravura de Francisco Sampaio ao fixar a receita do arroz de sarrabulho, um dos emblemas de Ponte de Lima, de ir às lágrimas quando feito a preceito. E em Ponte de Lima, não é de papas de sarrabulho que falamos, é de arroz, e sempre – ou quase sempre – acolitado por rojões. Arroz que conta já com confraria própria, assim sirva para preservar e manter bem vivo o assunto, o sabor e a vontade dela.

A receita do arroz de sarrabulho de Ponte de Lima começa pelas carnes. Para seis pessoas precisa de 500g de carne de ganso redondo de vaca, 500g de galinha gorda, 500g de costeletas de porco, um osso de assuão – ou suã – fresco e 150g de chouriço de carne caseiro. Para a alma do prato, há que contar também com meio coração de porco, 250g de bofe de porco e 0,25 litros de sangue de porco, devidamente misturado de vinagre para evitar a coagulação precoce. E, claro, o arroz carolino, o nosso, um quilo. O assunto não é para cardíacos nem sensíveis, há que ter coragem para passar à fase da confeção, na qual há que desfiar carnes, temperar com sumo de limão e cominhos q.b., terminando tal e qual como no arroz de cabidela.

O arroz de sarrabulho do restaurante Encanada, em Ponte de Lima. (Fotografia de Pedro Granadeiro/GI)

Os rojões são assunto quase religioso e devem vir para a mesa em travessa autónoma com as frituras de belouras, chouriça e tripa enfarinhada e a assessoria de batatinha aos cubos alourada em banha de porco, cobertura vaga de rodelas de limão e raminho de salsa. Serve-se os rojões e o arroz de sarrabulho lado a lado. Rosa Martins, excelsa cozinheira do restaurante Encanada pode bem ser a mais antiga e a mais certeira da especialidade de Ponte de Lima, tanto pela casa onde oficia contar mais de 80 anos de existência sempre a apresentar a receita, como pela sua própria experiência na sua execução ao longo de mais de 50 anos, já que a aprendeu por transmissão direta quando tinha apenas 10 anos. O restaurante não tem mãos a medir, tal a horda que aparece para provar, conferir e conhecer a especialidade todos os fins de semana. Aconselha-se por isso mesmo a podendo ir durante a semana. O que se bebe com o arroz de sarrabulho? O que é dado é Loureiro (branco) ou Vinhão (tinto) ambos da chancela do vinho verde, que de verde hoje pouco ou nada tem e é apenas designativo de frescura e da zona geográfica de proveniência.

A história está a fazer-se todos os dias e é fascinante ver como está vivo o arroz de sarrabulho e como cantam os rojões ao seu lado. Deste não há que lamentar não ter conhecido nem privado com os seus grandes executantes e defensores. De lamentar será sempre e só não irmos a correr para provar de porta em porta e tirar as nossas próprias conclusões. Quem pensa que se trata de prato pesado, não podia estar mais enganado, quando é bem feito é equilibrado e elegante. Como tudo, de resto, que é da grande tradição culinária portuguesa. Por isso, na dúvida vá pelo sabor!

Percorra a fotogaleria acima para conhecer quatro restaurantes onde a estrela é o arroz de sarrabulho com rojões.