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Crónica de Dora Mota: O poder do ter nada para fazer

(Foto: Pixabay)

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Agora que sou irremediavelmente adulta, tenho saudades de quando era criança e não tinha nada para fazer. O não ter nada para fazer e o estímulo criativo do tédio fizeram da minha imaginação o que ela é hoje. Quando era pequena, não havia anestesias tecnológicas, e não ter nada para fazer era mesmo isso, autenticamente. Era fica sentada nas escadas da minha avó, rodeada pelo perfume do limoeiro, a olhar para o jardim, para as linhas de pencas da horta, apreciando os diferentes recortes das folhas. Ou contando, por cores, os carros que passavam.

Também deixava o pensamento correr como o braço de água do quintal onde, aos cinco anos, tentei ensinar os pintainhos a nadar. Cismava nas singularidades das minhas irmãs mais novas, nos comportamentos enigmáticos e pouco lógicos dos adultos, em alguma história que os meus pais me tinham contado, revivia os gestos meticulosos da minha rigorosa avó nas tarefas quotidianas. Pensava nos vários tons de azul do céu e no material de que seriam feitas as nuvens. Passava a mão pela pedra das escadas e pelo ferro do corrimão, pela pele dos meus braços e pelo meu cabelo, e pensava na textura das coisas. Planeava misturar sumo de laranja, sabão, terra, ervas e pétalas de flores para fazer um remédio que curasse as doenças. Interrogava-me sobre porque é que eu era eu própria e não outra pessoa qualquer – e se as outras pessoas também se interrogariam porque é que elas eram elas próprias e não outras pessoas quaisquer.

Relendo o que escrevi, fica claro que eu fazia muitas coisas quando não tinha nada para fazer. Às vezes, combinava este galope à solta mental com umas velozes bicicletadas pela aldeia – nas quais acontecia esfolar os joelhos ou picar os braços nas silvas, associando assim sensações muito físicas às minhas evasões mentais. Mesmo assim, sobrava-me imenso nada para fazer.

Sucedia recorrer à minha mãe para este problema, e ela – que quase nunca tinha nada para fazer como eu – despachava-me com uma citação da sua avó de Vila Pouca: “veste-te e despe-te!”. Ponderei isso, mas não era divertido – mesmo no que dizia respeito às bonecas. Preferia deixá-las sempre com a mesma roupa e brincar às comidas, alinhando tachinhos muito arrumados e enchendo travessas com bonitas composições de folhas e pedrinhas, muito satisfeita com o sabor imaginário desses soberbos pratos. Pensar nos mistérios da existência e cozinhar continuam no topo dos meus grandes prazeres. E mea culpa: dito isto, devia procurar mais vezes fazer nada.