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Um roteiro para conhecer a estrada mais longa do país

Percorra a fotogaleria para conhecer o roteiro. (Fotografias de Constantino Leite)
Km 737 - Km 620 (FARO – ALJUSTREL) Esta será a única parte da viagem com um pedaço de vista mar. A partir de Faro, a N2 volta as costas ao Atlântico rumo a serras, planícies, rios e barragens, aldeias e cidades que cabem na palma da mão. Como São Brás de Alportel. O troço que percorre esta vila tem início no barrocal e termina em pleno Caldeirão, uma das mais belas serras do país, cujos montes, não sendo muito altos, se espraiam a perder de vista. Vale a pena cruzá-la ao entardecer, não só porque é nessa altura que o calor começa a dar tréguas, mas sobretudo para testemunhar o momento em que os montes conquistam um tom avermelhado, os habitantes saem à rua para dois dedos de conversa e os pastores conduzem as ovelhas. Até lá, é obrigatório o almoço em Barranco do Velho.
Km 737 - Km 620 (FARO – ALJUSTREL) Colado à N2, o restaurante Tia Bia é gerido, desde 2015, pelo casal Cátia Graça e Nuno Pires. Ele, filho da terra e chefe de cozinha, ela responsável pela sala. Juntos, reergueram uma casa que em tempos foi tasca e paragem obrigatória para os muitos camionistas que faziam esta estrada, numa altura em que Barranco do Velho tinha comércio e vários ofícios. Nuno teve um restaurante da Quinta do Lago, mas as voltas da vida trouxeram-no novamente à terra natal, desta vez para cozinhar sabores serranos como bochechas de porco preto assadas no forno, a largar o osso, como se quer, acompanhadas por migas.
Km 737 - Km 620 (FARO – ALJUSTREL) Também à face da estrada, outra preciosidade da serra é produzida sem ninguém dar por ela: a aguardente de medronho Mourinha. Diz-se, pelo Caldeirão, que a destilaria de Marília Ramos é das mais bonitas e artesanais. A caldeira é de cobre, assim como a cabeça, a manga e a serpentina, tudo partes da geringonça tradicional usada para produzir esta aguardente macia que se bebe de um trago só. Nos meses de inverno a «senhora do medronho», como é conhecida em Barranco do Velho, colhe o fruto vermelho e produz a aguardente num espaço antigo e bem cuidado, que trata com esmero e mostra com orgulho. Vale a pena a visita. De volta à estrada, avistam-se montes de cortiça, produtores de enchidos e de mel, palcos improvisados, famílias ciganas que fazem o caminho a cavalo, nas suas vidas itinerantes.
Km 737 - Km 620 (FARO – ALJUSTREL) A chegar ao Ameixial, uma placa em homenagem aos camionistas da Estrada Nacional 2 lembra a importância que esta via já teve. Quase à saída (para quem vem do Algarve) há uma pequena pérola à espera de quem traz o corpo moído da viagem: é que apesar de a distância entre Faro e o Ameixial ser curta, as curvas da serra são persistentes. Tal como o calor. Não se vê da estrada e há que procurar por Fonte da Seiceira para dar com um espelho de água pequeno, mas muito bem arranjado, resultado da vontade daquela população que assim o decidiu no Orçamento Participativo de 2014. Já perto de Almodôvar, a paisagem muda. Os montes serranos dão lugar a planícies douradas e a estrada faz-se agora mais plana, como a terra que a circunda.
Km 620 - Km 476 (ALJUSTREL – MORA) «Como é que se aguenta este calor? Olhe menina, atiramo-nos lá para dentro», diz a septuagenária que da, soleira da porta de casa, aponta para a Piscina Municipal de Aljustrel, que se estende, à sombra, lá em baixo. Da Ermida, tem-se uma vista de 360 graus sobre a vila: de todos os ângulos, sobressai o casario branco a preencher o declive acentuado das ruas. O município é bem conhecido pelo património mineiro que foi, inclusive, palco de um videoclip da banda portuguesa Linda Martini. O centro histórico de Aljustrel tem algum movimento a contrariar outras localidades do Baixo Alentejo, dourado pelas altas temperaturas do verão.
Km 620 - Km 476 (ALJUSTREL – MORA) À face da N2, Ervidel tem das escolas mais bonitas do território. Tem água por perto – a albufeira da barragem do Roxo. Tem vinha a perder de vista. Mas um bom punhado de gente só tem lá para novembro, pela altura do vinho da talha, festa que atrai muitos curiosos para a abertura das talhas de barro e prova do vinho novo. Quem o diz é a dona Sara, proprietária de um dos cafés do centro, o Coffe Time, que «estes nomes não há só em Lisboa», acrescenta a própria em tom jocoso. De Ervidel para norte, os campos lavrados ganham tons avermelhados. Há um troço da N2 que fica coberto pela copa das árvores, outro que é ladeado por sobreiros descascados e ainda outro que deixa antever a proximidade a Torrão, quando os terrenos junto à estrada se fazem de terra fina como a areia.
Km 620 - Km 476 (ALJUSTREL – MORA) Casa de Bernardim Ribeiro e Maria Rosa Colaço, esta vila trespassada pela Nacional 2 é também terra de Mário José Fagulha que, nos últimos 30 anos, se dedicou a recolher informação sobre Torrão para a editar em livro. Uma homenagem à terra onde D. Afonso Henriques acampou o exército na véspera da reconquista de Beja. No centro da vila, tem um restaurante de comida honesta e preços a condizer, onde serve uns imperdíveis pezinhos de coentrada e açorda de bacalhau com ovo bem aromatizada com hortelã da ribeira, numa dose que parece excessiva... mas não é. Chama-se Restaurante Belo Horizonte, mas quem se perder nas ruas estreitas de Torrão que pergunte pelo «café do Marinho». São as pessoas com histórias para contar, o princípio ativo que torna esta viagem pela N2 o melhor remédio contra a hegemonia – ou o chamado «mais do mesmo».
Km 620 - Km 476 (ALJUSTREL – MORA) Pouco mais do que 20 quilómetros para norte, a pitoresca Alcáçovas também guarda personagens que insistem, e bem!, em perpetuar manifestações culturais que no fundo são legendas de um país tão genuíno. É o que faz Gregório Sim Sim, de 83 anos, ao manter a sua oficina de chocalhos aberta ao público, mesmo que hoje em dia já só troque badalos e coleiras. A arte chocalheira, entretanto considerada Património Imaterial da Humanidade é, desde o século XVIII, parte do ADN desta vila pertencente a Viana do Alentejo. «Antigamente, não havia cercas. Os chocalhos que se penduravam ao pescoço de alguns animais eram muito importantes para avisar o movimento do gado», explica o senhor Sim Sim, deixando, por fim, o convite: «Quando cá passarem, venham-me cumprimentar.»
Km 476 - Km 361 (MORA - SERTÃ) Neste troço, a N2 liga o Alto Alentejo e a região Centro. Liga paisagens de montanha e praias fluviais integradas em contextos tão bonitos que ninguém mais se lembra da água salgada. Contas feitas, este curto percurso une os distritos de Évora (Mora), Portalegre (Montargil), Santarém (Sardoal) e Castelo Branco (Sertã) e dá a conhecer uma rica diversidade paisagística e cultural de uma parte do país que merece mais visitantes.
Km 476 - Km 361 (MORA - SERTÃ) Em menos de 30 minutos, a partir de Mora, encontra-se a barragem de Montargil que faz parte da bacia hidrográfica do Tejo e tem 14 quilómetros de extensão. Vale a pena pernoitar junto à água só para acordar de manhã cedo e ter o gosto de a ver fumegar, libertar o vapor que parece ali ficar suspenso só para nosso deleite. A vida que acontece nestas margens, em pleno agosto, é tranquila, sem multidões: um pescador, uma família a brincar dentro de água, e a equipa da Evasões a registar toda a beleza e calma do lugar.
Km 476 - Km 361 (MORA - SERTÃ) Quase em linha reta se chega a Abrantes, onde, à vista de quem passa na estrada, permanecem uma série de edifícios ao abandono. Este cenário, não menos comum noutras cidades portuguesas, não tem eco na pacata vila do Sardoal, mesmo ali ao lado. Bem cuidado, o centro histórico merece visita sobretudo a de quem é fã de património religioso: é que nuns escassos 1500 metros, há três igrejas e seis capelas.
Km 476 - Km 361 (MORA - SERTÃ) Antes de deixar a vila, há que saber que o chouriço picante e a moura assada do restaurante Quatro Talhas abrem as hostilidades de uma refeição que pode passar por pratos típicos - como a cozinha fervida ou a couve de Valhascos – mas também por um bacalhau confitado com farinheira da região e maranhos de porco. Os maranhos são ainda muito apreciados na vizinha Vila de Rei, onde se encontra o centro geodésico de Portugal. Fica no Picoto da Melriça e daqui consegue-se ter uma visão de 360 graus sobre um horizonte em que se destaca a serra da Lousã e, com tempo limpo, a da Estrela, quase a 100 quilómetros de distância. Nesta área, impõe-se um desvio da Nacional 2 para conhecer as várias zonas balneares como a praia fluvial do Bostelim, da Zaboeira, ou do Penedo Furado. Outra boa opção é a de Fernandaires, não só pelo lugar magnífico rodeado de altas montanhas arborizadas, mas também pelo passeio até lá chegar, que oferece aquele tipo de vistas que leva a pensar, «Como é que nunca tinha cá vindo antes?».
Km 341 - Km 203 (SERTÃ - TONDELA) O que faz da N2 uma rota tão sui generis é o facto de ter sido convidada a entrar nas localidades. Em muitas vilas, cidades, povoações, a estrada não vai à volta, pela periferia; estende-se pelo meio. Assim acontece na Sertã, ponto de partida de mais um pedaço de estada, de mais um pedaço de país. Diz-se que a Sertã deve o nome à bravura de Celinda, mulher do chefe do castelo morto durante as lutas ocorridas na conquista da Lusitânia. Consta que a senhora, que fritava ovos numa «sertage» – fritadeira quadrada – terá subido às ameias e despejado o azeite quente sobre os atacantes romanos para defender o castelo e vingar a morte do marido. É uma lenda rebuscada, admita-se, mas não faltará bravura às gentes da Sertã que ainda vão preservando as artes e ofícios antigos como a cestaria em vime, construída na Várzea do Pedro Mouro, ou as redes de pesca feitas em Roda do Cabeço.
Km 341 - Km 203 (SERTÃ - TONDELA) Sertã é banhada por duas ribeiras – tem, de resto, uma pequena praia fluvial mesmo no centro da vila – e o município é delimitado a oeste pelo Zêzere. Seguindo o curso do rio em direção a norte, chega-se a Pedrógão Grande. O percurso mostra o efeito do fogo, mas que não seja motivo para afastar os visitantes, que, chegados a Pedrógão, se descobrem numa vila simpática, pintada a branco, com os «pés» na barragem de Cabril. Aliás, os vários rios, albufeiras e barragens são argumentos de qualidade indiscutível para atrair à região Centro quem procura, em pleno verão, fugir dos lugares do costume.
Km 341 - Km 203 (SERTÃ - TONDELA) Fugir dos lugares do costume é a deixa que nos leva a Góis. Também atravessada pela N2, também banhada por um rio – o Ceira –, esta vila do distrito de Coimbra tem um crescente número de residentes estrangeiros e portugueses que deixam as cidades sobrelotadas e demasiado caras. À entrada de Góis, um armazém - que numa cidade grande já teria sido transformado em loft de luxo – é o ateliê de Latifa Sayadi, o Ferro Quente. A artesã nascida na Tunísia, viveu em Roma e mais recentemente em Berlim. Reside e trabalha em Góis há pouco mais de um ano e faz questão em falar só português. Faz esculturas em ferro forjado, mas também peças utilitárias como corrimões e portões para as casa da região. O pilão, o martelo, a bigorna, a guilhotina e o forno a gás são as suas ferramentas diárias para dar forma a peças que depois expõe em França, Alemanha, Tunísia. Por estas paragens, há um restaurante que passa despercebido e guarda sabores locais preparados com mestria. No Alvaro’s come-se truta frita – não tivesse o município viveiros –, uma boa tibornada e uma chanfana deliciosa feita pela mãe de Álvaro Martins, cozinheira de mão cheia.
Km 341 - Km 203 (SERTÃ - TONDELA) Também em plena N2, ergue-se, uns bons quilómetros adiante, o Lagar Museu, um lagar de azeite centenário entretanto restaurado e musealizado. Aqui aprende-se como em tempos se transformava a azeitona em ouro líquido. As geringonças de pedra e todo o circuito estão lá e funcionam, mas é ao lado, numa estrutura nova, que o azeite é hoje produzido. Neste local à face da estrada é ainda produzido mel que, desde 2013, recebe medalhas de bronze, prata e ouro em concursos nacionais. Percorrer a N2 é fazer uma espécie de raio-X ao país e testemunhar a evolução de projetos dignos de referência – é o caso da New Terracota, no município de Mortágua. Oitenta e cinco por cento dos azulejos que aqui se produzem, ainda de forma substancialmente artesanal, são exportados. A marca casou conhecimento e inovação para conseguir, a partir de uma unidade de produção pequena e longe dos centros urbanos, ter uma presença cada vez mais forte no mercado internacional. E se os azulejos industriais são feitos numa hora, os da New Terracota levam uma semana a ficarem prontos, são pintados à mão e não há duas peças iguais. Percorrer a Nacional 2 de lés-a-lés é também um exercício de história. Ainda antes de chegar a Tondela, a estrada passa pela terra natal de Salazar: Santa Comba Dão (Vimieiro).
Km 203 - Km 0 (TONDELA - SANTA MARTA DE PENAGUIÃO - CHAVES) A partir de Tondela, a N2 espraia-se em pleno Dão-Lafões e segue em direção ao Douro. Mostra vinha inserida numa paisagem completamente diferente da que se exibia menos de 200 quilómetros atrás. Mas ainda antes do vinho, é obrigatório um desvio de cerca de 3 quilómetros desde Tondela até Molelos, onde, porta sim porta não, há uma olaria de barro negro. As peças eram, em tempos, utilizadas para conservar cereais, azeitona e azeite, mas também para cozinhar. Aliás, nesta zona envolvida pelas lindas vistas da serra do Caramulo, o cabrito faz-se em forno a lenha e em barro negro de Molelos, nunca outro. A bem da verdade, a matéria-prima não é escura, mas acaba por ficar durante o processo de cozedura, que é de tipo redutor: a obstrução completa do forno em fim de cozedura origina uma louça totalmente negra e parcialmente impermeabilizada.
Km 203 - Km 0 (TONDELA - SANTA MARTA DE PENAGUIÃO - CHAVES) Fernanda Marques, da Olaria Tradicional, conta ter sido a primeira oleira da freguesia; aprendeu há mais de 25 anos, sozinha, e provou, à época, que a roda pode ser de oleira, porque é indiferente ao género. Ao contrário da olaria negra de Bisalhães – em Vila Real, que também vê a N2 passar – a de Molelos não está incluída na lista do Património Imaterial da Humanidade mas deverá ser igualmente preservada.
Km 203 - Km 0 (TONDELA - SANTA MARTA DE PENAGUIÃO - CHAVES) Em Canas de Santa Maria, a N2 apresenta um restaurante de beira de estrada cheio de «defeitos» e de carros à porta. Já se sabe que a dificuldade em estacionar, nestes casos, indicia que a comida é boa. Portas adentro, mesas corridas de famílias inteiras, camionistas, trabalhadores ocupam o espaço barulhento. Por aqui, come-se sobretudo arroz de costela de vinha de alhos e chanfana com batata cozida. Ninguém vem à Casa Maçaroco para fazer sala. Aqui, vem-se para comer, bem e barato, e seguir viagem.
Km 203 - Km 0 (TONDELA - SANTA MARTA DE PENAGUIÃO - CHAVES) Em menos de 30 minutos, chega-se a Viseu e a oferta é outra: a cidade está cada vez mais entusiasmante. Na Casa do Adro, consegue-se ter uma visão generalizada sobre o que a região tem para oferecer. De Viseu a Santa Marta de Penaguião é um pulo. E aqui, a N2 é coprotagonista de um espetáculo imperdível ao pôr do sol. A estrada volta a ficar sinuosa para acompanhar o declive das encostas. Se nada mais houvesse para conhecer, o cenário feito de vinha a abraçar pequenos vales de casario branco à luz filtrada do final de dia seriam motivos suficientes para parar. Mas há mais. Há, por exemplo, uma visita à Adega Alves de Sousa que bem se vê da N2. Em 2014, o sobranceiro edifício negro valeu ao seu autor, o arquiteto transmontano Belém Lima, a nomeação para o prestigiado Mies van der Rohe. Ou, bem mais prosaicas, mas igualmente valiosas, as trouxas e as moiras do artesão Leonel Coutinho, que ajudam a transportar os cestos das vindimas há décadas. Chegados a Chaves, o quilómetro zero indica o fim da viagem. Ou o início.

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De autocaravana, partimos de Faro, ao quilómetro 737, e um país inteiro depois chegámos a Chaves, ao quilómetro zero. Pelo caminho, conhecemos as histórias de quem vive nas margens da maior estrada do país. Fizemos uma travessia num Portugal pequeno que se quer assim, genuíno. Para resumir a viagem somos obrigados a usar uma frase batida: «Mais do que o destino, importa o caminho.»

 

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