Opinião: Os saloios não vêm de fora. Estão em Lisboa

A capital portuguesa está a sofrer uma forte mudança, entre a "albufeirização" e a enorme falta de cuidado com o espaço público. É esta a cidade que queremos?

Castelo de São Jorge às escuras à noite, fontes do Rossio sem água, Terreiro do Paço com uma saída de águas inestética e indigna e todo um muro e namoradeiras destruídos, sacos de lixo amontoados nas ruas, lixo nos passeios, carros e carrinhas nos passeios, calçadas encardidas, separadores de proteção nos passeios destruídos, paredes de prédios e portas grafitados por todo o lado, tuk-tuks aos montes, cheiro nauseabundo em muitas ruas, barulho até de madrugada em bairros que até há pouco tempo eram calmos e tranquilos. Por mais que se queira dourar a nova vida de Lisboa, a verdade é que a cidade não estava (nem está) preparada para uma vaga turística desta dimensão, nem a gestão camarária tem sabido cuidar do espaço público da cidade. Estes dois fatores estão a tornar o centro da capital num verdadeiro inferno. Não só a gentrificação e a especulação imobiliária tem afastado lisboetas de Lisboa como os lisboetas nem para passear têm já vontade de ir ao centro.

E isto nada tem a ver com uma posição contra o turismo. Muito pelo contrário. O turismo é um bem precioso que devemos apoiar, acarinhar e incentivar. A questão não é saber se somos a favor ou contra o turismo, mas saber que turismo queremos. Lisboa deve ser um destino de festas de despedida de solteiro onde se vem beber barato e vomitar nas ruas ou deve procurar ser uma cidade de qualidade? Deve ser um destino maioritariamente composto por hostels bonitinhos e baratinhos e de apartamentos airbnb ou com hotéis de topo que chamam outro tipo de pessoas? Resumindo, queremos fazer de Lisboa um destino como é Londres ou Madrid ou queremos fazer de Lisboa um destino como é a Oura ou Albufeira? É que até uma escada rolante igual a Albufeira a nossa capital já tem. A falta de estratégia da cidade em relação ao turismo – e esperemos que seja falta de estratégia porque se é isto que se pretende é bem mais grave – é algo assustador. E parece que não aprendemos nada com os erros cometidos no Algarve entre os anos 70 e 90.

Mas se o turismo massificado em Lisboa veio implicar grandes mudanças na cidade, umas positivas e outras negativas, a total falta de cuidado com o espaço público, por um lado, e más opções, por outro, da parte da gestão camarária, têm feito ainda pior. O Terreiro do Paço é um circo constante de feiras, concertos, exposições, demonstrações. Resultado: tem o piso todo destruído. A dignidade de uma das maiores praças históricas da Europa é atacada desenfreadamente com esta ânsia de a alugar a todo o tipo de eventos, de talvez fazer dinheiro fácil. Durante o Mundial de futebol (essa área que tem raptado os media e o país, não deixando que se discuta o que verdadeiramente é importante) nem a estátua de D. José I escapou à destruição. É assim em boa parte das praças de Lisboa: Rossio, Praça Camões, Miradouro de São Pedro de Alcântara, Restauradores, Praça da Figueira… Nenhuma escapa a esta loucura de animar o centro, como se o centro precisasse hoje em dia de ser animado. As mazelas deste uso intensivo nota-se em todas elas. E ninguém parece estar preocupado.

Alguém imagina a Acrópole de Atenas às escuras à noite? Ou a Torre Eiffel, o Coliseu de Roma, as portas de Brandemburgo… Já o Castelo de São Jorge há mais de meio ano que está praticamente sem luz (e uma das torres já estava apagada há anos). É esta imagem de desmazelo total que queremos passar? E as fontes do Rossio que não têm água há meses. Ora uma, ora outra… ora ambas. Os jardins da Avenida da Liberdade parecem estar ao abandono, tal é a falta de cuidado. A Praça de São Paulo acumula lixo, mau cheiro e está sempre ultra grafitada. A venda de droga ou de falsa droga na Rua Augusta, Rossio, Terreiro do Paço, por todo o Chiado, por grupos que mais parecem gangs é outra das vergonhas que ninguém controla. O que faz a polícia municipal? Como estão estas artérias nobres sem polícia para, no mínimo, afastar estes grupos?

E como a cidade lida com o lixo é outro grave problema. Não é crível que quem vive em Lisboa (não necessariamente lisboetas) seja menos cívico do que quem vive em Oeiras, Sintra ou Almada, para referir municípios da área metropolitana. Ou menos cívico do que quem vive no Porto, Coimbra, Évora, Faro ou Ponta Delgada. E Lisboa parece uma lixeira a céu aberto em muitos locais do centro. O problema não está maioritariamente nas pessoas que habitam a capital, está num sistema de recolha do lixo incompetente e de uma manutenção da limpeza da ruas inexistente ou ineficente. Se uma gestão camarária não sabe lidar com algo tão básico como o lixo então não saberá lidar com mais nada. Ter um sistema em que se incentiva os moradores a deixarem saquinhos do lixo à porta é o mesmo que dizer aos moradores: sujem a cidade à vontade. Sendo que boa parte do centro é composto por colinas, percebe-se bem o que acontece. No dia da recolha dos cartões é o mesmo, a cidade parece uma feira terceiro-mundista, porque ninguém se lembrou que Lisboa é ventosa e é ver cartões espalhados pelas ruas um pouco por todo o lado. Se chove a situação piora ainda mais. Para quando brigadas de limpeza de ruas em todo o centro, a trabalharem de manhã até ao fim da tarde, para colmatar mais esta vergonha?

A câmara, e bem, tem restrito o estacionamento de automóveis, diminuindo lugares, e incentivando outras formas de mobilidade dentro da cidade. Mas continua a ser muito branda com os abusos de carros em cima de passeios, de carrinhas que galgam passeios por todo o lado. Basta ir à Rua do Ouro, à Rua da Prata, por vezes mesmo em cima de praças, como no Rossio. “É só 5 minutos” ou “estou a trabalhar” são as desculpas de sempre quando alguém se indigna com estas atitudes nada cívicas. Até a polícia o faz, mesmo não necessitando ou não havendo urgência alguma, por isso o exemplo que devia vir de cima também não é dado. A impunidade é maior fora das horas de serviço da EMEL, ou seja, à noite e aos fins de semana. A qualidade de vida dos moradores é afetada e a imagem da cidade para os turistas degrada-se.

E nem é necessário perder muito tempo com a quantidade de obras bem intencionadas, mas mal concebidas, algumas delas que descaracterizaram os locais onde foram feitas. E outras que até foram bem feitas, mas que passado uns meses são vandalizadas ou que se degradam rapidamente tal é a má qualidade dos materiais. Lisboa, apesar de demasiado maltratada, continua a estar no topo das mais belas cidades da Europa e do mundo. Por isso, deverá continuar a receber muita gente. E isso é bom. Agora é tempo de cuidar a sério do espaço público da cidade. Porque os verdadeiros saloios têm sido os seus gestores e nós, lisboetas, que ainda aqui vivemos e deixamos que a nossa cidade seja tão mal gerida.

 

 




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