Crónica de Dora Mota: O nosso coração está no prato

(Fotografia: Rui Manuel Ferreira/GI)
«Somos genericamente um povo que conquista pelo estômago e pela gentileza. E até nós mesmos, que somos desse povo, nos deixamos encantar por esse talento tão bonito».

Um dos jurados e apresentador do popular programa de TV “Masterchef Austrália”, Matt Preston (que entrevistámos para esta edição), andou durante dias a comer por Portugal acima, do Algarve até Lisboa. Quem o seguiu no Instagram, pode verificar como se encantou, surpreendeu e se deixou ficar satisfeitíssimo diante de pratos de sardinha assada, salada de polvo, migas, amêijoas, arroz de tamboril, febras de porco preto e até um singelo frango de churrasco com batatas fritas, que lhe custou 5 euros e ele resumiu numa palavra: “Delicious!”.

O jornalista e crítico de comida, conhecido pela sua alegre excentricidade, celebrou um conjunto de comidas que, a nós portugueses, são mais ou menos o pão nosso de cada dia. E o que Matt Preston também celebrou, e o que mais me tocou, foi o aconchego que sentiu nessa mesa. Tanto graças às pessoas com as quais a partilhou, como graças àquelas que cozinharam o que lhe chegou ao prato. Não precisava de seguir o Matt Preston no Instagram para saber que – e arriscando uma regra que terá as suas exceções – somos genericamente um povo que conquista pelo estômago e pela gentileza.

Há outros países onde a comida é muito boa e que têm uma rica cultura gastronómica, mas também não preciso de conhecer todos os países do Mundo para perceber que Portugal está entre os que mais se podem gabar de possuir estas qualidades. Não posso fugir ao cliché de me espantar como num país tão pequeno existe tanta variedade de comida, tantas formas de fazer comida, de criação de sabores, de criatividade na hora de abordar os ingredientes disponíveis e do talento de criar ingredientes quando eles aparentemente não existem.

Falar disto faz-me lembrar a entrevista que fiz, há uns meses, ao chef e professor de cozinha Nuno Diniz, quando lançou um livro que se tornou um dos meus favoritos sobre a comida portuguesa. Chama-se “Entre ventos e fumos – Fumeiros e enchidos de Portugal” e é um inventário, enriquecido com notas de viagem e com histórias de pessoas e do autor, sobre os fumeiros portugueses. Nuno Diniz viajou por Portugal de fumeiro em fumeiro durante 14 anos e isso transformou-o. E ele, que estava dedicado à alta cozinha e formado pela cozinha francesa, ficou tão profundamente tocado por uma viagem a Montalegre, onde foi recebido com uma natural e plena generosidade, que passou a estudar a cozinha portuguesa simples a fundo.

Na entrevista, falou desse encantamento pela simbiose entre o aconchego da comida e o aconchego humano como um enamoramento da alma. “Não é muito percetível, é como o amor, a gente não sabe muito bem como é que aquilo chegou. Foi no estilo das pessoas, na facilidade com que nos abrem a porta, na curiosidade que têm sem querer perguntar ao mesmo tempo”. Somos um país de boa comida porque somos um país de bom coração, a nossa cultura é de bem receber e de juntar o acolhimento à comida. Todos nós já o fizemos e todos nós já o sentimos de alguém. Com todos os defeitos que temos, podemos orgulhar-nos desta doçura de saber criar boa comida e receber bem, com ela, quem nos visita.

 

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