Crónica: O espanto impresso na paisagem

(Fotografia de José Carlos Marques / Global Imagens)
Para lá das janelas de uma composição do metro, a geografia transforma-se e evolui proporcionando a quem a olha uma permanente surpresa.

Pode a mesma paisagem olhada quase diariamente, ao longo de anos, esgotar-se algum dia? Haverá sempre algo novo, algo que sempre esteve lá sem termos dado por ele. Sou utente há décadas da linha da Póvoa, hoje Linha Vermelha do metro do Porto. Ao fim de todos estes anos, poderia dizer não existir nada que já não tenha observado no percurso, de pouco mais de 20 quilómetros, entre as estações de Árvore e da Trindade. Mantenho o hábito de deixar de lado um livro, o jornal ou o telemóvel para observar em movimento para lá da janela. E, de verdade, continuo a deleitar-me.

Vi casas a caminho da ruína renascerem, agora numa outra função. Os seus quartos, cozinhas e salas deram lugar a escritórios; os seus pomares, a marcar o ritmo das estações, transformados em parques de estacionamento. Outras definham mesmo, a cada dia que passa outra janela sem vidro, o telhado a ceder ao desleixo, tomado por trepadeiras – que hão de habitar o espaço outrora ocupado por gente.

Vi grandes fábricas nascer e a encerrar a seguir; e outras a despontar nesse mesmo lugar. Outra gente, diversa, à espera na estação no fim de mais um dia de trabalho; vi uma “Chinatown” irrompendo, a albergar a maior comunidade chinesa residente em Portugal. Vi projetos megalómanos a ficar pelo caminho, vi autoestradas rasgando os campos verdes e casas, onde mora gente, engolidas pelos seus muros de betão. Casas que resistem, o sol roubado pelo talude da via rápida, os animais continuam por ali e a carrinha de caixa aberta, que começou o inverno cheia de abóboras-menina, vai-se esvaziando à medida que o Natal fica lá atrás e a primavera se anuncia.

A olhar a paisagem para lá das janelas do comboio, vi os salgueiros a encherem-se de carneirinhos, sinal do aproximar do fogo primaveril; e vi as primeiras folhas a cair no início de agosto, fazendo jus à sabedoria remota do povo das aldeias segundo a qual o um de agosto é o primeiro dia de inverno. Das janelas do comboio apanhamos as traseiras das casas, escancaradas no seu quotidiano, onde em vez de estores corridos vemos o pulsar do lar, roupa a secar, o vaivém de gentes durante os escassos segundos em que a máquina atravessa a paisagem.

Graças a estas viagens, fui testemunha de como o Porto cresceu e se transformou. Primeiro de comboio, na adolescência, furtivas escapadelas à cidade grande para espreitar a montra dos Porfírios, ao cimo de Santa Catarina, ou o Butikão, na Rua da Fábrica, ida ao cinema, na sala Bebé, no Trindade ou no Charlot, havia tantos à escolha. Vi estações de comboio, com salas de espera, bilheteira e cancelas, a travar estradas nacionais, transformadas em cubos de cimento e metal, sem nos protegerem da chuva no inverno nem do inclemente calor do verão.

Vi gatos ao sol e cães acorrentados ao longo de anos e, por estranho que pareça, nesta geografia que dizem ser a de maior produção de leite do país, nunca vi de verdade uma vaca a pastar na imensidão dos campos verdes.




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