Guia das cidades: passeio pelos lugares e memórias sadinas

Rui Canas Gaspar (Fotografia: A-Gosto.com/Global Imagens)
Entre uma vida de ação e a paixão pela sua terra, Rui Canas Gaspar já escreveu 15 livros sobre a cidade do Sado.

Rui Canas Gaspar, de 71 anos, caminha pela Rua das Oliveiras de mãos enfiadas nos bolsos do casaco e de chapéu na cabeça. A certa altura, pára e aponta para a porta do número 53, a casa onde nasceu, constatando com algum espanto que o prédio está para venda. As coisas estão a mudar no bairro piscatório de Troino, cujas casas baixas e coloridas, com roupas estendidas à janela, estão a dar lugar a alojamentos locais. Se por um lado é de louvar a recuperação do edificado, por outro o bairro já não parece o que era, alerta o setubalense.

Rui aproxima-se e pega no batente original da porta, que ainda é a mesma, e olha para a janela do piso térreo onde viveu com os pais e o irmão mais novo até ir para Bissau cumprir o serviço militar obrigatório, aos 21 anos. As memórias do lugar fazem-no recuar até quando brincava na “enorme” rua. “Parecia tudo maior quando éramos pequenos”. Rui Canas Gaspar estudou até à quarta classe na escola primária da Casa dos Pescadores – “onde todos os moços e moças do bairro andavam” – e depois fez o curso de comercial na Escola Comercial e Industrial de Setúbal.

Os pais sempre almejaram para ele mais do que o que haviam conquistado. “O meu pai trabalhava na pesca da sardinha e nunca me deixou sequer ver os barcos, para eu não ter a tentação de um dia querer ser pescador. A vida era tão dura e tão má, que eu teria de ser um rapaz de camisa e gravata, que trabalhasse num escritório”, recorda. Mas foi a pesca da sardinha e a indústria conserveira que motivaram o êxodo dos avós para Setúbal, no século XIX, saindo da região de Olhão. “O meu avô tinha seis irmãos, todos eles tiveram bastantes filhos. Hoje, somos imensos. Isto é um canavial maior que o da Várzea” [uma zona húmida da cidade], ri-se. Nascidos em Setúbal, os pais juntaram-se, na altura, à comunidade de algarvios que se tinha fixado no bairro de Troino.

Rui Canas Gaspar no parque urbano de Albarquel. (Fotografia: A-Gosto.com/Global Imagens)

O setubalense só viu com o próprios olhos o que o pai fazia quando, já maior de idade, pediu ao mestre do barco onde ele trabalhava (curiosamente, um tio) para subir a bordo e escrever uma reportagem. “O meu irmão, como tem menos oito anos que eu, já conseguiu ver muito mais”. Quando o pai deles dizia que ia à praia, descia na verdade umas ruas até à zona de areia e calhaus que foi batizada como praia do Seixal (hoje correspondente à Travessa do Seixal), onde os barcos atracavam e descarregavam o peixe, sob os voos famintos de gaivotas. A antiga rua da praia é a Avenida Luísa Todi.

 

Vida dedicada à escrita

A vida corrida entre as ruas do Troino e a Baixa permitiu-lhe ir conhecendo gentes, histórias e lugares. Tornou-o conhecido de toda a gente e aguçou-lhe o olhar atento e crítico. Tanto assim, que aos 17 anos – vingava ainda a censura do Estado Novo – publicou o seu primeiro artigo no jornal O Setubalense: “Setúbal tem campistas, mas não pode fazer campismo”. “Título provocador, mas publicaram. A minha professora primária, a dona Lucinda, encontrou a minha mãe na praça [o Mercado do Livramento] e fez um grande elogio, porque gostou muito de ler. Fiquei todo inchado”. A partir daí, começou a escrever crónicas para jornais locais, regionais e até para A Capital. Exerceu cargos em altos níveis do Corpo Nacional de Escutas, durante 25 anos, e chegou a editar um boletim informativo durante os quatro anos passados na Guiné.

“Trabalhava, era chefe de escuteiros, cantava no Coral Luísa Todi e namorava, não tinha tempo para estudar”, conta. Na tropa, em quartéis-generais, interpretara mensagens para os serviços secretos, e por duas vezes fintou as balas por ser muito “magrinho”. O que o pôs às portas da morte foi uma picada de mosquito com malária. Mas escapou por pouco, evacuado de avioneta no meio de uma cena hollywoodesca, e foi salvo por uma injeção. Quando voltou, em 1973, foi trabalhar como controlador de construção na Torralta, promotor daquele que viria a ser um dos maiores e mais luxuosos – porém condenado – resorts da Europa. Mantendo-se ligado à construção e ao imobiliário, pôs de lado a escrita, até a retomar há sete anos.

“A última fronteira”, sobre a zona da Várzea de Setúbal, é o mais recente dos seus quase 15 livros publicados, todos eles, de uma forma ou outra, dedicados a assuntos relacionados com Setúbal. “Gosto de escrever sobre Setúbal, ir à procura das mais diversas fontes e partilhar a minha opinião, ainda que vá contra a corrente”, admite Rui Canas Gaspar. Foi também ele o fundador do grupo de Facebook “Coisas de Setúbal”, com 70 mil membros.

 

Vista da zona conhecida por Fonte Nova. (Fotografia: A-Gosto.com/Global Imagens)

Todos os dias publica textos e fotografias informativas sobre o que se passa na cidade. “Os setubalenses, regra geral, falam mais do que aquilo que fazem”, aponta. Mas considera-os “pessoas humildes, boas, afáveis e solidárias”.

 

O ROTEIRO DE AFETOS

1. Parque Urbano de Albarquel

“Foi uma das maiores conquistas urbanísticas que tivemos, uma devolução do rio à cidade e que os setubalenses têm aproveitado muito bem. Vá a horas mortas ou a horas vivas, vejo sempre gente”, diz Rui Canas Gaspar, enquanto passeia pelo Parque Urbano de Albarquel, de quatro hectares. No sopé da Serra da Arrábida a vista é para a cidade, para o azul do rio e para Troia. O espaço tem restaurante, café e geladaria, equipamentos desportivos, parque infantil, miradouro, campo de jogos e estacionamento gratuito.

2. Jardim multissensorial das energias
Apesar de este ser um dos mais recentes jardins da cidade, já colheu a preferência do setubalense. “É um espaço recente e dinâmico, dedicado às energias renováveis, principalmente muito interessante para as crianças em idade escolar”, explica. O jardim fica nas Escarpas de São Nicolau e é inclusivo. Tem seis estações dedicadas às energias, zona de descanso, um canteiro de ervas aromáticas e percursos pedonais com vista para a baía de Setúbal.

Este Jardim Multissensorial fica nas Escarpas de São Nicolau, tem vários espaços e é um dos preferidos de Rui Canas Gaspar. (Fotografia: A-Gosto.com/Global Imagens)

3. Tasca do Xico da Cana
O mural alusivo à fauna e flora do rio Sado, pintado no muro em frente a este restaurante, tornou-se uma imagem de marca da Travessa do Seixal. A casa, essa, é “centenária”, fundada pela muito conhecida e lembrada figura do Xico da Cana, e está nas mãos de Paula e Vítor Coelho há quase seis anos. Quando lá vai com família e amigos, Rui Canas Gaspar acaba por pedir robalo ou lula grelhada. Todo o peixe vem da praça, assegura Paula, a cozinheira. No tacho, o que também sai muito é a massa de sapateira e a feijoada de choco. Pode-se comer lá dentro ou numa esplanada aquecida.

 

Tasca do Xico da Cana, o restaurante de eleição de Rui Canas Gaspar. (Fotografia: A-Gosto.com/Global Imagens)




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