Crónica de Paula Ferreira: A minha praia cheirava a caril

Passadiços de Vila do Conde (Fotografia: Pedro Granadeiro/GI)
As caminhadas pelos passadiços são um regresso à praia da infância, com um extenso areal até ao mar, plena de silêncio, apenas perturbado pelo grasnar das gaivotas.

É um recuo de décadas, uma espécie de viagem até à infância. Ao tempo dos verões longos, de dias sem fim, estendidos de junho ao final de setembro, às vezes a entrar ainda um bocadinho por outubro. Desses dias, guardo uma memória em tons dourados, a cor da areia, entre a foz do rio e a curva, distante, onde uma rocha comprida mergulhava no mar e era a marca clara do fim daquele mundo.

O silêncio só era interrompido pelas ondas e pelo gorjeio agreste das gaivotas, rente à noite, quando o sol se escondia lá longe, na América, dizíamos nós. Essas imagens vêm ao meu encontro sempre que entro nos passadiços, entre Azurara e Mindelo, sobretudo se é um fim de tarde ameno, povoado pelo aroma intenso da erva do caril a devolver-me a praia da minha infância. Limpa de todos os ruídos desagradáveis, sem as hordas de veraneantes a invadir o Bar de Praia, explorado na época pelo meu pai, que me fazia estar ao balcão a vender gelados (algo impensável nos dias de hoje e, sejamos justos, já bastante censurável na década de 70 do outro século), a atender os clientes, alguns fastidiosos, com exigências absurdas. Os meus amigos, lá fora, tomavam banhos de mar, jogavam vólei, divertiam-se nos baloiços da senhora Ana, a banheira concessionária das barracas, que me olhava intimidadora sempre que eu ousava voar nos baloiços, sem usufruir de um toldo.

O aroma da erva do caril só se fazia sentir, recordo agora, depois de os forasteiros regressarem às suas casas e a imen- sidão da praia, enfim, pertencer-me por umas horas. Só para mim, na companhia dos esqueletos das barracas despidas das suas vestes de riscas azuis e brancas.

Caminho ao longo dos passadiços. Vieram proteger as dunas, os montes de areia onde rebolávamos em brincadeiras infindas, desde o seu cume bem alto até ao sopé, onde apanhá- vamos caracóis, ocos, que levávamos para casa e guardávamos em caixinhas para no inverno ainda termos um pouco de praia; outras vezes eram largados simples mente em qualquer canto com outros despojos do verão.

Ao fundo, o rumor do mar, longe da estrada, distante do barco salva- vidas e do mastro da bandeira que desejávamos sempre verde. Mais longe ainda dos terrenos, que o inverno transformava em lagos, onde hoje continuam a irromper prédios, na paisagem (que dizem) protegida.

Quando entro nos passadiços, logo ali onde o Ave desagua no Atlântico, o areal estende-se até ao longe, como se fosse preciso uma longa caminhada até à água, e as dunas voltam a ser os cambalhões, como lhes chamava a minha mãe, sempre inquieta com medo de me perder para sempre nas ondas revoltas, e os campos prometem voltar a transforma-se em sapais no inverno. A minha praia continua a cheirar a caril, apesar de todos termos crescido.

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