Crónica de Carina Fonseca: as palavras preferidas

Praia da Vagueira. Fotografia: Maria João Gala /Global Imagens
Há pessoas que, ao falar, me fazem cair de amores pela língua uma e outra vez. Acontece-me em casa, no trabalho, na rua. Beleza distraída ou doçura impensada, saboreio tudo. Sem culpas.

Uma das palavras preferidas de uma amiga que não vou nomear começa por “c” e é um palavrão. Há uns anos, decidi oferecer-lhe, pelo aniversário, um sabonete personalizado com a dita palavra e corei ao fazer a encomenda, mesmo à distância. Hoje, não a vejo como obscenidade. Parece-me leve, até musical. E muito porque a associo àquela mulher e aos momentos que passámos juntas, com muitas conversas profundas e livros adorados pelo meio. Não é só pela comida que se viaja até pessoas e lugares; pelas palavras também. E muitas vezes fico a pensar na forma curiosa como alguém as combinou, quase sempre de modo natural, pouco pensado, em casa, no trabalho ou na rua. São doces que me caem no colo, sem aviso, e que saboreio sem culpas.

Recentemente, ouvi uma criança, diante de uma montra com bolas de Berlim em miniatura e outros bolos, pedir uma “bola bebé”. E quando, num supermercado, ao fim de muitas voltas, perguntei a uma funcionária por um famoso creme de chocolate e avelãs, surpreendi-me com a resposta: “está nas costas do chá”. Achei a expressão tão bonita, que fui a mastigá-la lentamente até casa; ainda por cima, era certeira: encontrei logo o produto. Há pessoas que, pelo modo como se exprimem, me fazem reapaixonar pela língua uma e outra vez, sem sequer sonharem. E expressões que entram automaticamente para a galeria dos pratos favoritos, esses que não nos cansamos de repetir.

Recordo com um sorriso frases longínquas, como “já vi palhaços mais bonitos” (comentário feito à minha passagem, era eu uma universitária com queda para correntes e meias às riscas); expressões como “coelhinho macaco” (de um filme) ou “cabras sapadoras” (das notícias). Por vezes, são outros a partilhar comigo o seu encanto com as palavras, contagiando-me. Uma chef há pouco tempo em Portugal contou-me que tinha ficado deliciada com o nome de um prato: bacalhau com todos. Sentir o seu entusiasmo foi como desfrutar de uma boa refeição, mas só interiormente – o que sempre traz benefícios na hora de espreitar o peso na balança.

Ah, a alegria que é sair em reportagem e ouvir certas pessoas falar! Exemplo recente foi o do Miguel Rocha (“Migas”), tricampeão nacional de bodysurf apaixonado pelas ondas, que não desiste do desporto, apesar de lhe ter sido diagnosticada esclerose múltipla. Como leitora, já me tinha deleitado com uma entrevista em que ele se referia à namorada, Maria Pedro, como o seu “mar em terra”. Mais tarde, confirmei pessoalmente, na praia da Vagueira, o jeito bonito que tem de falar. Migas explicou que a doença lhe tinha dado mais força para continuar, que o bodysurf o ajudava, até um simples mergulho. “Acho que é o sal e o sol. Andas uns dias sem ir ao mar e começas a ficar insosso”, comentou.

Fora dos livros também há frases perfeitas. Saem da boca destas pessoas que iluminam tudo em volta, pela maneira como agem e pelo que dizem. Sublinha-se muito as vantagens do silêncio, como falar comporta riscos; mas eu continuo a preferir a palavra. Sobretudo se for assim, cantada. Se for assim, poesia. Forte e, de preferência, não editada.

 




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