Santos Populares: a nova Alfama continua antiga (e fadista)

O fado n'A Muralha - Tasca Típica. (Fotografia: Gonçalo Villaverde/GI)
Nem só de alojamento local e romarias de turistas se faz o dia a dia entre as ruelas do mais antigo e típico bairro alfacinha. Com a chegada das Festas de Lisboa, importa virar atenções para as moradas que têm dado, nos últimos tempos, um novo fôlego a Alfama. Sem esquecer as raízes e o fado. Muito pelo contrário.

São três as Marias que estão sentadas no banco de madeira do Beco da Bicha e que riem para a câmara, num momento de convívio e descanso antes de irem para casa. O resultado fotográfico, a preto e branco, está fixado e explicado numa parede deste recanto. «São exemplos como este que fazem de Alfama um sítio único, onde as pessoas e o bairro se teimam em confundir», lê-se na placa ao lado. Verdade seja dita. Na Alfama de hoje, ouvem-se pelas suas estreitas ruelas dialetos de todo o Mundo, dia e noite, e durante todo o ano. Muitas das suas portas históricas deram lugar ao alojamento local. Mas no mais antigo e típico bairro lisboeta a autenticidade ainda reina, inclusive nos novos espaços que têm surgido nos últimos tempos, e dado um novo fôlego de vitalidade às redondezas.

Dois exemplos disso mesmo estão situados junto ao Museu do Fado e aliam o som das guitarras portuguesas à cozinha tradicional portuguesa. «Coma e beba enquanto está vivo, porque vai estar muito tempo morto», está escrito num azulejo que decora A Muralha – Tasca Típica. A esta casa com 90 anos, os últimos dez sob a chancela de Paulo Machado, juntou-se há dois verões uma segunda sala. Trata-se d’A Muralha – Tapas e Vinhos, muito fresca e ideal para dias de calor, onde se petiscam tábuas e se assa chouriço, enquanto se prova um dos cem vinhos nacionais, a maioria DOC e DOP, ou a cerveja artesanal da própria casa, uma Pale Ale com sabor a gengibre. Às quartas, de 15 em 15 dias, canta-se aqui o fado.

N’ A Muralha – Tapas e Vinhos assa-se chouriço.
Fotografia: Gonçalo Villaverde/GI

Na casa-mãe, come-se rodeado de fotos antigas de concertos de fado, discos de Alfredo Marceneiro, xailes pretos e da Muralha Fernandina, que serve de uma parede inteira do restaurante. À entrada, também apetece estar ao serão, numa convidativa esplanada, debaixo de uma parreira com 70 anos. Na brasa, opta-se entre o carapau, a dourada, o salmão. As gambas ao alhinho, o pica-pau de porco e de vaca e a morcela assada com laranja são outras das propostas, assim como os clássicos polvo e bacalhau à lagareiro.

«Este mês, faz 20 anos que abri o meu talho na Rua dos Remédios», conta Paulo, um homem dedicado que nunca tirou férias. Nasceu em Almeirim mas foi em Alfama que se fixou. Distribuía carne para os restaurantes de fado do bairro e o gosto por este universo foi crescendo. De tal forma que aprendeu a tocar guitarra portuguesa. Volta e meia, é vê-lo entregue aos acordes, junto às mesas, numa pausa entre as lides do restaurante.

A poucos metros dali, também se canta e toca o fado vadio, todas as sextas e sábados, no intimista palco do Fama d’Alfama, neste novo e descontraído restaurante que abriu há ano e meio. É o segundo espaço desta casa, mais espaçoso que o primeiro, também situado em Alfama. Aqui, João Cardim aposta no revivalismo do vintage e todas as peças decorativas têm uma história: do telefone antigo do melhor amigo a uma estátua preta que estava na antiga sede da PIDE e às réplicas de caricaturas assinadas por Almada Negreiros a decorar as paredes. Depois de anos a trabalhar em Angola, Brasil, Indonésia e Moçambique, Cardim decidiu mudar de vida, apostar na restauração e assentar em Alfama, o bairro que conhece desde criança, onde os avós têm propriedades.

Nas ruas de Alfama escuta-se dialetos de todo o Mundo.
Fotografia: Gonçalo Villaverde/GI

Ao almoço, há menus de oito euros e à noite pede-se à carta, sem pressas. Em cima da mesa, o líder da cozinha alia o sabor tradicional da cozinha portuguesa a uma apresentação e algumas técnicas mais modernas. Ou não tivesse trabalhado antes em restaurantes de Miguel Castro e Silva, um dos pais da cozinha contemporânea nacional.

As sardinhas assadas acabam de reforçar a carta, onde há, também, Brás de bacalhau e vegetariano, polvo à lagareiro com crocante de cebola, pica-pau de novilho ou secretos de porco grelhados. O bolo de bolacha húmido é razão suficiente para voltar.

Noites tranquilas e casas abençoadas

É talvez a piscina mais original de Lisboa. A cor vermelha combina com os laranjas dos telhados de Alfama que estão em seu redor, e com os tons quentes habituais do pôr-do-sol. É impossível falar do Memmo Alfama sem começar pelo seu descontraído e sossegado terraço com piscina, onde se aprecia a vista para as igrejas de Alfama, o Panteão, a margem sul e o Tejo, sentado numa espreguiçadeira ou numa das mesas do bar de apoio, onde há petiscos e bebidas frescas. A chegada dos Santos Populares traz também novidades: tapas de sardinha e uma sangria «especial» alusiva à época festiva.

Há seis anos que o primeiro boutique hotel de Alfama deu nova energia ao bairro, cujas ruelas e segredos mostra aos hóspedes, em passeios pedestres e diários com guia, de hora e meia. O convívio também se promove ao pequeno-almoço, onde se aposta numa mesa grande corrida onde se pode e deve trocar dois dedos de conversa com o vizinho do lado. É também aqui que se servem jantares temáticos, às terças, com petiscos portugueses.

À noite, dorme-se num dos 42 quartos duplos, com bastante luz natural. Muitos têm vista para o Tejo – até da própria cama – e alguns têm um pequeno terraço perto da piscina. A decoração, em tons claros, é simples e aposta no essencial: o bairro onde está. E por isso, todas as camas têm na sua cabeceira um disco de fado emoldurado.

O Altar fica num edifício do século XV.
Fotografia: Gonçaloo Villaverde/GI

Não muito longe dali, num edifício do século XV, a música é outra. Chama-se Altar e veio responder às preces dos amantes da cozinha italiana e dos petiscos portugueses, os dois alicerces desta casa abençoada onde nasceu o jesuíta São João de Brito. O mármore recortado ao longo do balcão, a fazer lembrar o manto de um altar, e o próprio ambiente resguardado do restaurante aludem ao seu passado.

«Tinha que ser uma casa simples, uma espécie de gruta, um altar. Afinal, nasceu aqui um homem despojado de bens materiais», explica Albertina Reis. É uma das proprietárias, ao lado de Miguel Araújo, amigo de longa data. Uma dupla que se equilibra: ele traz a espontaneidade, ela a serenidade. São também eles os donos da casa-vizinha O Prego, um nome de referência na zona.

Ao som de música descontraída, no Altar saboreiam-se petiscos como salada de polvo, camarões à Bulhão Pato, pastéis de bacalhau, sardinhas, petingas fumadas e lulas recheadas em lata. De Itália chega a inspiração para os carpaccios – do bacalhau ao salmão, espadarte, atum e novilho – os risotos e as mais de 20 pizas artesanais, algumas com opção de massa de carvão vegetal. Neste último capítulo, a consultoria é do pizzaiolo Roberto Mezzepelle, especialista em farinhas italianas e biológicas. Neste Altar, as pizas são leves e de digestão fácil, com aposta no sabor e no produto fresco. Antes de chegarem à mesa, ficam a fermentar até 36 horas.

Fazer arte com as próprias mãos

É neste novo 2 em 1 que João Figueiredo, artista plástico há duas décadas, passa agora grande parte do seu tempo. O design e o artesanato nacional ganharam uma nova morada em Alfama, com dezenas de peças de autor e antiguidades a preços democráticos. Azulejos, cestas de verga, bijuteria, cerâmicas, candeeiros, sofás de veludo, lenços e sabonetes dão cor e vida à Mofo, que mantém alguns traços originais, como uma arcada do século XVI.

Ao lado, funciona uma casa de chá onde se pode beber algo fresco, petiscar ou comprar produtos de doçaria regional. «É isto que liga os dois espaços: a promoção do que é nosso», diz João, que na vintage Casa Profícua vende queijos de Azeitão, chocolates e amêndoas algarvias, ameixa d’Elvas, cavacas das Caldas, bolos de mel de cana da Madeira ou chás açorianos.

A recém-inaugurada Oficina de Construção de Guitarra, do Museu do Fado, também promove a arte feita pelo trabalho manual. O projeto é antigo, remonta à candidatura do Fado a Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO e concretiza-se agora. Tudo para que se «promova e divulgue esta atividade, que é uma arte e que é feita por cada vez menos pessoas», explica Sara Pereira, diretora do museu.

O Museu do fado tem uma nova Oficina de Construção de Guitarra.
Fotografia: Gonçalo Villaverde/GI

Sob a mestria e a experiência de duas grandes escolas no que toca à construção da guitarra portuguesa, as de Gilberto Grácio e de Óscar Cardoso, decorrerão neste espaço vários workshops pontuais e o curso de um ano, que começa no próximo ano letivo. A oficina pode ser visitada por qualquer um, consoante marcação prévia. Vale a pena aproveitar e ver também a nova exposição do Museu do Fado, «O som da saudade: A cítara portuguesa», que mostra a evolução da guitarra portuguesa, do século XVIII aos dias de hoje, com dezenas de exemplares expostos. Em Alfama, já se sabe, o fado é rei e senhor. E ainda bem. Que assim se mantenha.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.

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