A cidade do Porto desenhada pelos Urban Sketchers

Chamam-se Urban Sketchers, vivem e viajam para desenhar. E qualquer pessoa pode fazê-lo, inclusive na própria rua. «É como pôr uns óculos novos todos os dias» garante o fundador do movimento Urban Skechers.

Veja aqui a o vídeo com os cinco urban sketchers

A australiana Liz Steel leva algum tempo a conseguir sentar-se num canto da Ribeira, tantas vezes é abordada por gente que, como ela, está no Porto à boleia do simpósio. Anda na estrada há dois meses. Em maio deu aulas em Itália e, como o encontro anual se realizava em Portugal (18 a 21 de julho) nem foi a casa. Mais do que um vício, os seus cadernos são uma espécie de fiéis amigos e desbloqueadores de conversa que nunca a deixam sozinha onde quer que esteja. «As pessoas param e falam comigo. Quando fotografas estás a capturar um momento, mas quando te sentas e desenhas vês coisas a acontecer e tornas-te parte do lugar».

Entre os mais de 800 participantes está o espanhol Gabriel Campanario, jornalista do The Seattle Times, pai do movimento. Tudo começou há 12 anos, altura em que se fixou na terra do grunge. «A mudança para uma cidade nova pode ser muito excitante, mas também um pouco intimidante», revela. A adaptação foi feita ao ritmo de cada desenho, o reconhecimento internacional trouxe-o a internet. Começou sozinho, hoje são quase 150 mil. Muitos deles correm o mundo, sobretudo cidades, para desenhar – o coletivo tem uma matriz urbana e um dos mandamentos é desenhar no local e em tempo real – se bem que andar na estrada não seja condição obrigatória para um bom urban sketcher. É o próprio espanhol quem o afirma. Ao fim de 12 anos diz que continua a desenhar Seattle e que o desenho é uma forma privilegiada de se (re)descobrir a cidade, o bairro, a rua onde vivemos. «Como pôr uns óculos novos todos os dias», conclui.

 

 

Da cadeia de Monsanto à aldeia africana sem luz

«Estamos horas a olhar para os sítios. O desenho permite ver as coisas de forma completamente diferente, ver muito melhor» concorda Hugo Costa, arquiteto do Porto a residir no país vizinho. O autor do blog A fresh drawing everyday é daqueles que viaja para “rabiscar” o mundo. Recorda aquela a ida a Sarajevo, em 1997, após a guerra. Na altura fotografava, mas a máquina partiu-se e começou a desenhar. Nunca mais parou.

Em cada esquina há uma potencial ilustração, em cada urban skecher uma história. O brasileiro Eduardo Bajzek, de São Paulo, também já não concebe sem os seus cadernos. «Mais do que olhar a gente tem de compreender e isso fica gravado na memória com mais força». Formado em arquitetura, em 2017 aproveitou a ida ao simpósio, em Chicago, para partir à procura das obras do arquiteto Frank Lloyd Wright.

Não é obrigatório ser-se viajante, a verdade é que «quase todos os urban sketchers viajam para desenhar. “Ou pelo menos não viajam sem cadernos, lápis e aguarelas” confirma Nelson Paciência, presidente da associação Urban Sketchers Portugal e organizador do evento. Também ele não foge ao chamamento. A família já sabe que, uma vez por ano, segue o seu caminho, sozinho. Há alguns anos voluntariou-se para dar aulas de desenho na prisão de Monsanto, “uma das experiências mais marcantes da minha vida” e também isso foi uma viagem. «Muitos dos reclusos nunca tinham desenhado e, ao fim de dez meses, faziam desenhos incríveis.»

A cidade do Porto desenhada pelos Urban Sketchers

Gabriel Campanário, fundador do movimento Urban Sketchers, desenhou a Ponte D. Luís.

Numa época em que o turismo se massificou esta é uma excelente forma de ter uma experiência única. Mário Linhares destaca a ida a África, em 2013. Na sequência de um trabalho para os Missionários da Consolata – é designer e professor de desenho – sugeriu que o pagamento fosse uma viagem a uma das suas missões, para si e para a mulher, Ketta Cabral Linhares, também urban sketcher. Foi assim que passaram um mês numa aldeia sem eletricidade, na Costa do Marfim. Primeiro, retrataram no papel os chefes da aldeia, que os receberam numa cerimónia, depois o quotidiano dos habitantes. «Foi tudo aquilo que nenhuma agência de viagens nos podia proporcionar.

Desenhos e textos «muito pessoais» que acabaram por resultar numa obra premiada em França: Diário de viagem – Costa do Marfim. E mais poderiam publicar, a partir das suas vivências noutros países, como Timor, onde Ketta nasceu e de onde saiu, em 1986, com a família. Em 2015 voltou ao sei país natal com Mário e Matias, o filho de ambos, à data com apenas um ano de idade. Estiveram quase dois meses em movimento, com passagem por Singapura, Tailândia e Indonésia. A desenhar, é claro. Hoje, a criança tem os seus próprios diários gráficos e circula entre os sketchers mais crescidos com o à vontade de quem sabe que é um deles.

Porto «incrivelmente rico» para ser desenhado

Não, nem todos os os ilustradores são arquitetos, designers ou (filhos de) professores de desenho. Se dúvidas ainda há de que esta é uma disciplina ao alcance de todos, a psicóloga clínica Teresa Ruivo esta aí para comprová-lo. Começou já perto dos 50 anos – continua a dizer que não sabe desenhar – agora é incapaz de viajar sem caderno e aguarelas, embora não escolha o destino de férias em função disso. Diz que se esquece de muita coisa, mas dificilmente daquilo que coloca no papel.

Na Índia, marcou-a a interação com os locais: «Perde-se a vergonha de desenhar, porque se tem 100 pessoas em cima, a ver». Na Islândia, retratou «a tranquilidade e a dimensão das paisagens». Fala com a Ponte D. Luís I em fundo, no «lindíssimo» Porto, desejosa de captar «o lado antigo das coisas, que está quase a desaparecer».

É consensual. Todos os sketchers parecem encantados com a cidade nortenha. Gabriel Campanario é o primeiro a gabar-lhe as singularidades. O Douro, as pontes, os monumentos. É a curiosidade que o move, o desenho não apenas como um hobby, mas como fonte de conhecimento. Desenhou a Igreja da Misericórdia por estar interessado na Rua das Flores, sem carros, quando na “América” poucos espaços urbanos são amigos dos peões. Não parte sem desenhar a Torre dos Clérigos, para ficar a saber mais sobre a sua história. «É uma cidade incrivelmente rica, complexa, com várias camadas. Adoro o facto de olhares para cima e veres edifícios em diferentes ângulos», afirma, por seu lado, Liz Steel, que está de visita pela primeira vez.

Eduardo Bajzek, que fez a sua estreia na Invicta em 2007, elogia-lhe «as vistas, as ruas estreitinhas, as perspetivas incríveis, a luz muito bonita». Palavras ditas enquanto desenha a livaria Lello, esvaziada de clientes. Um postal (ilustrado), mais um, deste Porto tão turístico quanto autêntico – dependendo do olhar e do traço de cada um.

 

 

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