Viagem ao sabor das memórias, nas Aldeias Históricas de Portugal

Dona Beatriz, em Idanha-a-Velha (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)
Este é um passeio movido pela “cozinha sentimental” das Aldeias Históricas. Um legado gastronómico marcado pela geografia e a sazonalidade, feito de receitas resgatadas da memória das suas gentes. Esses testemunhos do passado são agora postos à mesa dos restaurantes, e servem de ponto de partida à descoberta do território.

Doze aldeias históricas, outros tantos menus inspirados numa cozinha de memórias. Um livro e 14 restaurantes que dão a provar a tradição. O projeto “Receitas que Contam Histórias”, uma iniciativa da Associação de Desenvolvimento Turístico das Aldeias Históricas de Portugal, é uma jornada pelo legado gastronómico desse território feito de montanhas e prados verdes, que nos leva à descoberta da mesa beirã mais autêntica.

“É uma viagem pela cozinha sentimental, como ponto de partida para os muitos futuros que as aldeias podem ter”, define Olga Cavaleiro, autora da carta gastronómica que reúne um registo do receituário tradicional, recolhido ao longo de quatro meses de entrevistas à população das 12 Aldeias Históricas (Almeida, Belmonte, Castelo Mendo, Castelo Novo, Castelo Rodrigo, Idanha-a-Velha, Linhares da Beira, Marialva, Monsanto, Piódão, Sortelha e Trancoso). A investigadora fez um levantamento detalhado de saberes, práticas culinárias e produtos endógenos que exprimem a memória alimentar destas terras. Mas mais do que um livro de receitas, Olga quer que a Carta Gastronómica das Aldeias Históricas seja uma ferramenta para o desenvolvimento local. Assim, o documento, que será publicado em breve, deu origem a diversas ementas, elaboradas pela Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra, e adotadas por 14 restaurantes locais. Estes menus são o ponto de partida para conhecer o território, os produtores e as histórias por trás do que nos chega à mesa. A carta dá ainda a conhecer cada uma das aldeias segundo o calendário alimentar que marcava o quotidiano das populações, de forma a “mostrar que existe uma sazonalidade e havia razões muito lógicas para comer cada coisa em determinada época”, explica Olga.

Olga Cavaleiro (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

No restaurante Cova da Loba, em Linhares da Beira, a ementa é inspirada na Feira de Gado da Carrapichana, e começa com um queijo de ovelha DOP Serra da Estrela da Casa Agrícola dos Arais. Nesta pequena queijaria, em Vide-Entre-Vinhas, o queijo e o requeijão são feitos de forma artesanal, a partir do leite de 270 ovelhas de raça bordaleira, de criação própria, e mais 1200 de produtores de aldeias vizinhas. Célia Silva aprendeu a arte com os avós, e em 2014 decidiu dar continuidade à produção familiar. Cresceu em Celorico da Beira, mas os fins de semana da infância passados na aldeia a ajudar os avós com as ovelhas e o queijo, acabaram por ditar a vocação da engenheira zootécnica. “Estava sempre à espera que fosse sábado para vir para aqui”, recorda.

Casa Agrícola dos Arais (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

Célia Silva, da Casa Agrícola dos Arais (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

À mesa do Cova da Loba, o queijo amanteigado que Célia produz vem acompanhado de pão de centeio, azeite e azeitonas, a abrir caminho para a entrada, a morcela frita – cada menu é composto por couvert, entrada, sopa, prato principal, sobremesa e uma gulodice final -, que precede uma rica sopa de grão, reforçada com chouriça e massa, e tradicionalmente cozinhada com o osso do presunto. A atração principal são as febras à moda da feira, apuradas ao sabor reconfortante com que recordamos os cozinhados das nossas avós, neste caso pela mão certeira da Tia Alice, guardiã da cozinha do Cova da Loba desde que o abriu Paulo Mimoso, filho da aldeia, há 12 anos. O passeio gustativo pelas memórias gastronómicas de Linhares termina com as papas de carolo e um miminho de chocolate negro e ginja. E todos os momentos (assim como todos os menus da carta gastronómica) são harmonizados com os vinhos da região, uma pequena amostra da extensa garrafeira de Paulo, que pelos corredores do restaurante terá mais de 200 referências de todo o país.

Cova da Loba (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

Cova da Loba (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

O Casas Altas Rufete, produzido em Souropires, num quadro de vinhedos com a Serra da Marofa ao fundo, é um dos vinhos que integra a seleção. José Afonso começou a engarrafar a produção da propriedade familiar há 30 anos, movido pelo interesse que ganhou nos passeios de bicicleta que fazia pelas regiões vitivinícolas da Europa. “Comecei por Bordéus, e quando voltei mudei as minhas vinhas todas à francesa”, recorda. A curiosidade fê-lo introduzir castas internacionais, como a Chardonnay e a Riesling, que “se deram muito bem”. Ainda que naqueles 15 hectares de terreno – metade dos quais de vinhas velhas, com mais de 60 anos – predominem essencialmente Baga e Rufete, nos tintos, e Síria, Fonte Cal e Arinto, nos brancos, que dão origem a vinhos DOC Beira Interior. O médico aposentado, natural de Coimbra, não assume uma paixão pelo vinho, mas antes um vício. “É como um jogo, todos os anos a gente aposta que vai ser melhor”, confessa. E o trabalho é permanente. Durante a poda, que se avizinha, gosta de pôr os auscultadores e ouvir a Radio Classique, de Paris, enquanto prepara a vinha para a aposta de mais um ano.

 

A Beira junto ao Douro

Na aldeia medieval de Castelo Rodrigo, a influência do Douro, ali tão perto, sente-se também à mesa. “A geografia marca as pessoas e o que comem”, lança Olga. Daí que, nesta terra quente beirã, a laranja e a amêndoa sejam ingredientes de muitos fins culinários. E ainda que estejamos num território associado, por excelência, ao centeio, em Castelo Rodrigo, outrora conhecido como “celeiro da Beira”, também se cultivava trigo, o que explica, por exemplo, a abundância de migas no receituário tradicional.

Essa tradição está presente no menu servido – sob reserva – na Casa da Cisterna, um alojamento acolhedor, com nove quartos, que mantém a linha original do edifício em pedra, recuperado, mas com todas as comodidades, incluindo uma piscina debruçada sobre o casario, que cede protagonismo, no inverno, ao aconchego da lareira.

Casa da Cisterna (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

O menu da carta gastronómica que exalta os sabores da aldeia abre com azeitonas temperadas com tomilho, morcela doce com laranja e sopa de cornizóis – vagens de feijão frade -, seguido pelo polvo, que antigamente chegava a estas terras do interior seco, tal como o bacalhau, bem regado com azeite e servido com umas saborosas migas do mesmo.

À sobremesa celebra-se a doçaria popular, sob a forma de tonicos – biscoitos feitos à base de azeite, aguardente e laranja – com queijo de ovelha e laranja macerada em aguardente. E um torrão de amêndoa acompanhado por um figo seco.

Quem percebe bem destas gulodices é Maria José Gomes e Eugénia Torres – mais conhecida por Geninha -, que há vários anos se dedicam à sua confeção. Maria José começou com 12 anos a aprender com uma vizinha que fazia os doces tradicionais para os casamentos. “‘Anda Maria José, que tu tens força’ dizia-me, e punha-me a bater os esquecidos”, recorda. “Chamam-se assim porque era preciso bater até a gente se esquecer. Às vezes até dava o sono”, conta. Na sua Padaria Gomes, aberta há 30 anos, vende esquecidos, tonicos, económicos, bolinhos de pão de ló e muita outras variedades de pão, biscoitos e bolos típicos.

Por sua vez, Geninha pegou numa parelha bem apreciada: “Antigamente comia-se a amêndoa dentro do figo. Era o chamado casamento”, e pôs-se a experimentar novas combinações. Começou por caramelizar as amêndoas e agora, na loja Sabores da Geninha, tem mais de uma dezena de coberturas: amêndoa com gengibre, cacau, canela, caramelo salgado, côco, ou em versão salgada, torrada com ervas aromáticas ou caril. A mais recente criação são os bolos feitos com farinha de amêndoa, moída por si.

 

Do azeite aos enchidos do Sueste

Chegar ao olival de onde provém o azeite Egitânia, em Idanha-a-Velha, ao final da tarde, é assistir a um bonito espetáculo crepuscular, de feixes dourados a brilhar entre a folhagem das oliveiras. Vemos Monsanto, elevado ao fundo, e um rebanho de ovinos a pastar pela plantação. Tiago Lourenço e Ricardo Araújo são os artífices desta paisagem agrícola de 180 hectares, em modo de produção biológica, que preserva a tradição do olival de sequeiro, e as variedades endémicas da região: Bical, Cordovil e Galega da Beira Baixa. Ambos trocaram a cidade pelo campo. “Vim a Monsanto aos 19 anos, e toda a minha vida fiquei com vontade de vir viver para aqui”, confessa Tiago.

A cultura da oliveira, não é o único vestígio deixado pelos romanos que por aqui se estabeleceram. A quinta é um autêntico museu ao ar livre, com ruínas romanas a serem descobertas em vários pontos de escavação arqueológica. E a própria aldeia conserva ainda alguns vestígios da antiga cidade romana entre o casario, onde descansa também a oliveira mais antiga da zona, com 1630 anos de idade.

Azeite Egitânia (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

Dona Beatriz (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

A poucos passos dali, a Dona Beatriz prepara-se para pôr o pão que amassou no início do dia a cozer no forno comunitário. Será o complemento ideal à prova do azeite Egitânia, fresco, frutado e ligeiramente picante.

Juntando os enchidos tradicionais que Paula Lopes confeciona e vende no seu talho em Monsanto (a Mercearia da Paula), estaria completo um belo couvert de sabores regionais. A batateira, feita à base de batata cozida, gordura e tempero de chouriça; e a morcela de fígado, que leva também carnes ensanguentadas da cabeça do porco, são dois dos que dificilmente se encontrarão noutro lugar. Ou ainda o borlhão, feito com carnes gordas de cabra, temperadas com bastante hortelã e sal, e colocadas no bucho da cabra. Paula aprendeu com “as pessoas antigas da aldeia”. Os pais tinham uma criação de suínos, que ainda mantém, e para “aproveitar os desperdícios”, começou a fazer enchidos.

Mercearia da Paula (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

“Uma das coisas que esta carta mostra é que o porco era a base do calendário alimentar. Quando se matava um porco tinha de haver uma chouriça do porco anterior, era sinal de que tinha sido bem aproveitado e que este irir fazer o propósito do anterior”, realça Olga Cavaleiro.

O menu da aldeia de Castelo Novo, servido mediante reserva no Pedra Nova – uma unidade de turismo rural, elegante e airosa, que resultou da recuperação de uma antiga casa em pedra – não contempla o porco, mas dá antes o protagonismo ao arroz tostado, feito na água da cozedura da galinha, aos ovos verdes, pastéis de bacalhau e peixinhos da horta. E a uma gulosa tigelada de leite de cabra, dos pastos da serra da Gardunha.

Pedra Nova (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

Pedra Nova (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

Ainda assim, Laurinda Duarte, uma das fundadoras da Associação Sócio-Cultural de Castelo Novo, e a sua irmã, Fernanda, guardam saborosas memórias de infância associadas a essa sazonalidade e aproveitamento do que a terra e os animais davam. “Na casa dos meus avós a fartura não era muita, mas tínhamos uma pequena quinta e havia sempre alguma coisa. A minha avó fazia um refogado, metia feijão, chouriça – como havia a matança do porco isso eles tinham sempre – e umas sopas de pão e depois ovos mexidos por cima”, recorda Laurinda. Era uma espécie de açorda, a que se juntam lembranças do arroz de ossos da suã – antigamente cozinhados com batatas -, da reconfortante sopa de grão, e das papas de carolo, que pediam à mãe sempre que lhes apetecia “um miminho”. No salão da associação, juntam a comunidade em dias de festa e convívios, em redor de uma mesa feita destas e muitas outras receitas com história.

Associação Sócio-Cultural de Castelo Novo (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

A mesa de festa de Sortelha
No Casteleiro, povoação vizinha de Sortelha, e na sua área de influência, o restaurante Casa da Esquila põe à mesa o menu de festa dessa aldeia histórica encastelada.O pão de centeio, o queijo de cabra (fresco ou seco), as azeitonas e o azeite abrem os trâmites, seguidos das grainhas, uma espécie de pica-pau de carne de porco. Na sopa, uma canja de galo, e para prato principal, o cabrito assado do Santo Antão. Nos dias de celebração era habitual a refeição terminar com leite creme, e para um docinho extra, também são servidas rabanadas, fofas e acabadas de fazer. “É um menu clássico da aldeia, onde queremos voltar ao que era, sem artifícios”, descreve o chef Rui Cerveira.

Casa da Esquila (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

O queijo amarelo e o queimoso
A queijaria BeiraLacte, no Fundão, é produtora de queijos tradicionais da Beira Baixa há mais de 30 anos. Do portefólio de produtos com denominação de origem destacam-se o amarelo e o picante (também conhecido como queimoso). O primeiro é um queijo curado de pasta semi-dura e ligeiramente amarelado, feito de leite cru de ovelha e cabra. O segundo tem a mesma composição mas é salgado por três vezes e curado durante 12 meses em palha de centeio, o que lhe confere um aroma e sabor muito intensos.

BeiraLacte (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

 

Cor e aconchego entre as serras
Em tempos, foi Casa dos Machados e chegou a pertencer ao morgado dos Chãos. Depois, esteve vários anos ao abandono, já conhecida como Casa da Cerca. E em 2015, este solar do século XVII, no concelho do Fundão, ganhou nova vida, como alojamento de charme, voltado para o design: o Cerca Design House. O restauro conservou as paredes em pedra no interior, que contrastam com as cores vibrantes de decoração. Cada um dos 10 quartos da casa principal tem o nome de uma planta das serras da Estrela e da Gardunha, e a eles juntam-se mais cinco villas independentes. Há um jacuzzi no antigo estábulo, e uma piscina para aproveitar os dias soalheiros.

Cerca Design House (Fotografia de Leonardo Negrão/GI)

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