Verão no Douro: um roteiro de comboio pelo vale vinhateiro

Uma das melhores formas de conhecer a região é atravessando-a de comboio, pela linha do Douro, que serpenteia a par do rio ao longo de quase 160 quilómetros. Diariamente, há seis horários com ligação do Porto à estação do Pocinho, em Vila Nova de Foz Côa, que oferecem uma forma cómoda de viajar pelo Douro, com acesso direto a diversas quintas e pontos de interesse, para além de lugar na primeira fila para ver deslizar à janela as encostas em retalhos.

“Demore-se. Aprecie. Abrande! Está no Douro.” O conselho é dirigido aos hóspedes que entram no elevador do ORIGINAL DOURO HOTEL, na Régua. É um convite a deixar a pressa e as correrias do dia-a-dia à porta e a abraçar o ritmo indolente do vale, para saborear os encantos da região com calma. É também um apelo à paciência, face à lentidão do dito elevador, instalado de forma a preservar a construção original do edifício – onde chegou a funcionar o hotel mais antigo da região -, sob o custo da rapidez. O primeiro registo da casa é de 1880, e já em 1930 se fazia referência a ali existir um estabelecimento hoteleiro.

“É um edifício histórico e por isso tentamos manter a estrutura original”, refere Alice Carneiro, a jovem empreendedora que transformou a casa devoluta num confortável hotel de charme com 18 quartos. As camadas de história que cobrem o edifício foram postas a descoberto durante o projeto de reabilitação: o tabique e as vigas em madeira combinam harmoniosamente com novas paredes em betão, fotografias da casa antes do restauro, mobiliário e azulejos originais e peças feitas à mão pela mãe de Alice. “A casa foi-nos mostrando história, cicatrizes, e o betão é mais uma cicatriz que fica”, comenta a proprietária.

Original Douro Hotel (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

Original Douro Hotel (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

As portas vermelhas da antiga pensão adornam agora a sala de pequenos-almoços, que dá acesso a um pequeno terraço junto à linha de comboio, que passa nas traseiras do edifício. Um dos quartos mais requisitados, principalmente pelos amantes da cultura ferroviária, tem vista sobre a via-férrea. Da cama, ou da pequena varanda, observam-se as manobras das máquinas ferroviárias, e o movimento diário de comboios no seu trajeto do Porto para o Pocinho e vice-versa. Para quem não se incomoda com o som, e é especialmente fã de locomotivas, é uma experiência única. O quarto dá ainda acesso a uma ponte sobre a linha. Quase se sente o vento à passagem do comboio. Mais próximo que isto, só dormindo dentro de uma carruagem.

A estação da Régua fica ao fundo, daí a meia dúzia de passos, e ao lado, nos antigos armazéns ferroviários, reconvertidos em espaços de restauração, está instalado o THE RIVER, sob um bonito teto que conserva as traves em madeira originais do edifício. Entre os sabores da região que preenchem a carta, está a sopa duriense, inspirada no caldo que os trabalhadores levavam para comer no campo, à base de batata e moira, um enchido típico, o polvo confitado em azeite ou o bacalhau com crosta de broa. Nas carnes destacam-se cortes nobres como o tomahawk e o entrecôte maturado, o cabrito assado e o magret de pato, com acompanhamentos à escolha. Para o final, fica uma surpreendente reinvenção do rebuçado da Régua, um creme de ovos delicado envolto em massa filo. Durante a tarde, funciona o serviço de bar, com mais de 300 referências de vinhos do Douro, e também outras bebidas da região, como o gin produzido pela Quinta de Ventozelo, outra forma de expressão dos aromas e sabores do território.

Polvo confitado em azeite no The River (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

The River (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Uma casa sobre o rio e laranjas doces

Da estação de Covelinhas, basta passar um pequeno portão para entrar na QUINTA DOS MURÇAS. A propriedade foi adquirida pelo grupo Esporão em 2008, que desde então tem-se focado em encapsular o caráter único de cada parcela de vinha em garrafa. A produção biológica e com mínima intervenção permite obter uma expressão autêntica de cada terroir e nada melhor que um passeio guiado pelas vinhas para perceber do que se fala. Também existe um conjunto de percursos pedestres que levam a conhecer as parcelas, de diferentes altitudes e exposição solar, e outras influências como a extensão de margem de rio, a orientação vertical das vinhas e os solos xistosos, de que resultam vinhos elegantes e de grande frescura, como se pode comprovar com uma prova.

Quinta dos Murças (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Quem quiser prolongar a visita pode alojar-se na casa do século XIX, composta por cinco quartos, dois deles incluídos numa área familiar, uma confortável sala de estar, de elegância campestre e varanda sobre o rio Douro, um jardim com piscina, cozinha à disposição dos hóspedes e uma sala de jantar, onde são servidas refeições caseiras a pedido. Ali convida-se a vivenciar o ambiente de quinta, e por isso não há televisão. É antes substituída por um livro à varanda, um serão ao piano, um churrasco de verão – à distância de uma chamada, a encomenda de carne do talho do Pinhão chega no último comboio da tarde -, uma visita à adega, um passeio de barco ou um piquenique nas vinhas. Há ainda a oportunidade de provar o azeite da quinta e as laranjas, doces e sumarentas, que são a estrela da mesa de pequeno-almoço. Para setembro estão já a ser preparados dois programas de vindimas, que incluem, no dia 10, visita à cave e adega, lagarada e prova de vinhos, a que se acrescenta, no dia 17, um almoço com o enólogo José Luís Moreira da Silva.

 

Da receita dos ferroviários ao peixe de rio

Neste trecho da linha do Douro, o comboio segue tão próximo do rio que quase lhe sentimos a frescura. Os olhos colam-se à janela, a ver passar o manto de retalhos que cobre as encostas do Alto Douro Vinhateiro. É um dos lugares mais bonitos da Europa, disse recentemente a revista de viagens Condé Nast Traveller, impressionada com a beleza natural da região, que é Património Mundial da UNESCO.

À chegada ao Pinhão, no concelho de Alijó, destaca-se do quadro o edifício do THE VINTAGE HOUSE HOTEL, e os seus belíssimos jardins. O hotel de luxo tem acesso direto à estação, onde vale a pena apear, nem que seja apenas para ver os bonitos painéis de azulejo que a decoram, e que retratam paisagens e atividades tradicionais do Douro.

The Vintage House (Fotografia: Pedro Granadeiro/GI)

 

Mas uma vez ali, facilmente se chega à QUINTA DO BOMFIM a apenas cinco minutos a pé da estação. É a casa do Porto Dow’s, e mediante reserva, os visitantes podem conhecer todo o processo de produção e ainda fazer provas de vinhos do Porto e Douro DOC. No primeiro andar de um antigo armazém de vinhos, com vista panorâmica sobre o rio e a ponte do Pinhão, acaba de inaugurar o Bomfim 1896 (a data é uma referência ao ano de construção da cave antiga), o novo (e segundo) restaurante do chef Pedro Lemos na Quinta do Bomfim, também dedicado à cozinha duriense, com uma abordagem mais sofisticada e moderna.

Uma experiência bem diferente do universo Symington, é proporcionada na Quinta do Vesúvio. Lá chegaremos, também de comboio – existe ainda um programa que liga as duas quintas através de um passeio de barco -, mas antes paramos na Foz do Tua. Junto à estação, há uma casa, que já foi mercearia e taberna, e viu nascer a linha. “Isto abriu antes de existir a Estação do Tua”, assegura Liliana Oliveira, à frente do espaço, que batizou de TUA MERCEARIA, em 2017. A estação foi inaugurada em 1883, e desde então aquele estabelecimento comercial tem feito parte da história da ferrovia. Existem até dois bancos em madeira de antigas carruagens que fazem agora de assento à mesa. Quando Liliana abraçou o projeto, começou por ser um sítio para beber um copo e picar umas tábuas ao final do dia, mas algures no caminho virou casa de petiscos, que junta receitas típicas da região com propostas mais contemporâneas. Há cogumelos no pote, com cebola, enchidos e vinho do Porto, asas de frango com molho agridoce, tábuas de queijos e enchidos, xixinhos – carne de porco em vinha d’alhos, servida em potes de ferro – sandes de polvo e de bacalhau, como ali faziam há 50 anos, esfarrapados – “são ovos rotos à minha maneira”, explica Liliana, feitos com enchidos da região – e posta laminada, servida com frutas e legumes.

Tua Mercearia (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Para os doceiros há crepes, waffles e gelados, e na pequena loja de produtos regionais, em particular do concelho, encontram-se azeites, compotas, chás, bolachas e vinhos. Para refrescar recomendam-se as sangrias, ou a afamada receita dos ferroviários, uma bebida à base de vinho e cerveja, servida nas mesmas canecas de metal de há 50 anos. A bebida tornou-se popular entre os trabalhadores da estação – que serviu de entroncamento com a Linha do Tua até 2008, ano em que foi desativada, e onde se efetuava o transbordo de passageiros e mercadorias – que ali se juntavam ao final do dia.

 

Do outro lado da rua fica o CENTRO INTERPRETATIVO DO VALE DO TUA, fruto de um projeto de reabilitação premiado que transformou um antigo armazém ferroviário num espaço que através de uma exposição interativa e sensorial procura preservar as memórias do Vale do Tua antes da construção da barragem, que eliminou parte da antiga linha de comboio. Num primeiro corredor, que evoca os túneis da via férrea sentem-se os aromas do zimbro, do rosmaninho e da laranja, ou a textura do xisto, e mais à frente, um vídeo em 360º e um antigo quadriciclo, utilizado na inspeção da linha permitem experienciar o que seria uma viagem de comboio na linha do Tua. Há ainda uma área dedicada ao projeto da barragem, desenhada pelo arquiteto Eduardo Souto de Moura e às medidas de minimização do impacto da infraestrutura.

Centro Interpretativo do Vale do Tua (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

No armazém ao lado, está uma das portas de entrada no Parque Natural Regional do Vale do Tua, onde os visitantes encontram informações sobre miradouros, percursos pedestres e outras atrações. Aí por diante, já depois de atravessar o rio sobre a ponte metálica de Ferradosa, com a paisagem a tomar os contornos mais rudes do Douro Superior, chega-se à estação do Vesúvio. A influência de Dona Antónia Adelaide Ferreira, eternizada popularmente como Ferreirinha, levou à construção de uma estação que servisse a propriedade adquirida pelo seu sogro em 1820. Hoje, a QUINTA DO VESÚVIO está sob a alçada da Symington Family Estates, mas mantém o charme próprio de uma das maiores propriedades do Douro, com 326 hectares, dos quais 130 de vinha. A casa solarenga conserva muito do mobiliário deixado pela empresária duriense, e depois de décadas votada ao uso exclusivo da família Symington, no ano passado abriu finalmente portas a visitantes.

Quinta do Vesúvio (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Quem reserva uma visita à Quinta do Vesúvio – mínimo de sete dias de antecedência – é como se por um dia a casa fosse sua. O programa, exclusivo e personalizável, tem a duração mínima de seis horas. À chegada, as boas vindas com refrescos são seguidas de um passeio de jipe na vinha, acompanhado por um guia e muitas das histórias vividas na quinta. A experiência segue com uma visita à adega centenária, que se enche de vida por altura das vindimas. A pisa a pé prolonga-se noite dentro nos oito lagares de granito, acompanhada de música e dança, e os afazeres vêm-se de relance da janela do comboio, que passa atrás da adega.

 

Na garrafeira da casa, espera aos visitantes uma prova dos vinhos mais especiais da Quinta do Vesúvio, os DOC Douro e os Portos Vintage, seguida de um almoço harmonizado, na varanda com vista para o rio e margem oposta, coberta de olival e vinha. No inverno, troca-se o alpendre pela sala de jantar e o aconchego da lareira, mas os sabores que chegam à mesa são sempre os da região: a sopa de tomate coração de boi, o polvo à lagareiro, o pernil assado.

Na estação seguinte, a de Freixo de Numão, é a PETISCARIA PREGUIÇA um dos principais motivos de paragem. Também se pode chegar de barco, aproveitando o cais sob a ponte ferroviária do Torrão. “Vindo de comboio, de carro ou de barco, a visão é completamente diferente”, realça Tatiana Filipe. Há sete anos, ela e o marido, Jean Mangin, aceitaram o desafio do avô Acácio e tomaram conta do Preguiça (alcunha do bisavô). “Isto começou como uma tasquinha há mais de 30 anos. Era uma brincadeira de amigos. Pescavam o peixe no rio e depois vinham cozinhá-lo”, conta a neta do fundador. A especialidade da casa, continua a ser o peixe do rio, pescado todas as manhãs por Jean, e atrai comensais de longe, que ali vão de propósito para almoçar. A afamada sopa de peixe, inspirada na receita da avó Amélia, é uma das estrelas, a par do peixe frito. Ao fim de semana há ainda javali e outros pratos especiais.

Tatiana Filipe e Jean Mangin na Petiscaria Preguiça (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Da sala e da esplanada têm-se vista privilegiada para o quadro do Douro Superior. “Está sempre a mudar o ano todo, nunca está igual. É lindo”, comenta Tatiana. O rio e a ponte, onde passa o comboio no seu vaivém diário, emolduram a imagem à medida que vai tomando novas cores, com o passar das estações. Dali, só falta chegar ao Pocinho, paragem terminal da linha do Douro. Inicialmente, prolongava-se até Barca D’Alva, mas hoje só lá chega o rio, seguindo depois os contornos fronteiriços até entrar em Espanha, já no concelho de Miranda do Douro.

Linha do Douro (Fotografia: Reinaldo Rodrigues/GI)

 

Comboio Histórico

O Comboio Histórico já regressou à linha do Douro. Como é habitual durante o verão, um conjunto de carruagens de madeira, datadas do início do século XX e a locomotiva a vapor, percorrem todos os fins de semana o troço entre a Régua e a estação do Tua. As viagens acontecem todos os sábados, até 29 de outubro, e aos domingos, até 9 de outubro. O passeio inclui paragem no Pinhão, animação a bordo, com danças e cantares regionais, e a visita ao Centro Interpretativo do Vale do Tua. Na estação terminal é feita a inversão da locomotiva. “Quando chega aqui tem que fazer a manobra para voltar e no fim os ferroviários vêm beber a receita”, comenta Liliana, que em frente serve petiscos e refrescos na Tua Mercearia. Bilhetes: 22,50 euros/45 euros (crianças dos 4 aos 12 anos/adultos).

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