Era um fim de tarde de dezembro, enevoado e frio. Na aldeia de Fafião (Cabril, Montalegre), a população reunia-se para aquela que seria registada como a última batida ao lobo na serra do Gerês. Estava o ano de 1948 a findar. Os lobos acercavam-se da aldeia e a população não podia prescindir de nenhum do seu gado. Organizou-se e conseguiu atrair para o fojo quatro lobos.
“O meu avô [Domingos] era pedreiro e um exímio caçador”, conta Nuno Rebelo, mostrando a fotografia na parede do seu restaurante. “Participou nessa última batida. Isto era uma aldeia pobre e as pessoas viviam dos animais.” Natural de Fafião, Nuno regressou há meia dúzia de anos à aldeia natal, onde abriu o primeiro hostel da serra e também restaurante, o RETIRO DO GERÊS.
A história que conta é um exemplo de como humanos e lobos conviveram em tensão durante séculos. E se há quem ainda encare o lobo-ibérico como um perigo iminente, outros, cada vez mais, veem nele uma bandeira da serra a ser preservada. Fafião assumiu esta espécie protegida como símbolo e até lhe dedicam um evento. O festival Aldeia de Lobos, que começou em 2019 e teve este ano a quarta edição, faz-se com exposições de arte, tertúlias, oficinas e música ao vivo, sendo um dos palcos precisamente o FOJO DOS LOBOS DE XERTELO. Este e outros eventos têm feito a aldeia crescer. Com 144 habitantes, possui quatro restaurantes, um café-hamburgueria, um hostel, uma guesthouse, e vários habitantes abriram as suas casas ao alojamento local.
O hotel e restaurante de Nuno Rebelo instalou-se num espaço de família que durante os anos 1980 foi essencial para a população. “Os meus pais abriram como mercearia. E era aqui que também funcionava o telefone público, o correio, e depois mercearia e alojamento.”
Depois de um acidente de viação em 1989, que vitimou oito crianças da aldeia, incluindo a irmã de Nuno, passaram anos em que a saúde da mãe foi decaindo. “Obriguei-a a fechar o espaço em 2009. Ficou 11 anos fechado.”
Nuno sempre desejou voltar às origens e restaurar o legado familiar. “Investi aqui a minha vida toda e era para abrir em maio de 2020. A pandemia rebentou em março.” Seguiram-se dois meses de insónia, mas o esforço foi compensado. “Como fechou tudo, toda a gente queria vir para o Gerês. Passavam aqui 500 carros por dia.”
O hotel, com seis suítes, um T0 kitchnette e três quartos com quatro camas, começou a receber muitos hóspedes. No restaurante, também mercearia de produtos locais, homenagem aos pais, serve-se comida da serra. Os enchidos são quase todos feitos pela sua mulher, Odete, e a carne barrosã chega às mesas acompanhada de arroz de legumes e batata assada.
Mas a aldeia começou a mudar, aos poucos, já há uma década, desde que abriu ali um dos oito polos do ECOMUSEU DO BARROSO (VEZEIRA E A SERRA), dedicado sobretudo ao lobo e aos pastores.
Júlio Marques, portuense que trocou a vida urbana pela serra, está no ecomuseu desde 2016 e tem sido um dos maiores dinamizadores da região. “A nossa aldeia assenta nas bases do comunitarismo, das vezeiras [pastoreio comunitário]”, conta. “Leva-se o gado à vez para a serra e assim funciona há cinco séculos. Tentamos preservar as vezeiras das vacas, que ainda estão bastante ativas, e a vezeira da rês [das cabras], que foi sofrendo perdas enormes.”
Quando Júlio veio para cá trabalhar, “havia 800 cabras. Em 2017, houve uma grande debandada da população e em 2019 já só tínhamos dois pastores e 70 cabras”. A Associação Vezeiras, da qual faz parte, adquiriu 200 cabras. “Fizemos um rebanho nosso; não queremos perder nem ganhar dinheiro, apenas que seja sustentável manter a tradição.”
Júlio não foi parar à serra por acaso. Teve um burnout quando trabalhava em marketing de relojoarias e começou a ir para o Gerês aos fins de semana, para conhecer e explorar o parque. Abriu uma comunidade nas redes sociais chamada O Gerês.
Mudou-se de vez para a serra e não sente saudades da cidade. “Quando vim para cá, criamos o conceito de ‘aldeia de lobos’, porque este está intrinsecamente ligado à história da serra.” Construíram duas estátuas do mesmo nas entradas da aldeia, uma delas junto ao fojo, e receberam a primeira oficina sobre o lobo-ibérico em Portugal, em 2018.
A ideia foi sempre construir um sistema de turismo sustentável, envolvendo a população. “Na época, tudo soou um pouco estranho, mas demos formação às pessoas e fizemos um grande projeto de marketing para promover a aldeia.” O festival Aldeia dos Lobos nasceu da vontade da Associação Vezeiras e realiza-se todos os anos em julho.
Mas há quem continue a não gostar do lobo. A população mais idosa, que viveu as vezeiras, lembra-se bem da dificuldade que era levar as cabras a fazer 15 a 20 quilómetros. Para, depois, poderem ser mortas por lobos. “Já se foi mudando as mentalidades, até porque muita gente já não tem animais.” Além disso, o medo de investidas a humanos não é, considera, muito justificado. “Não há casos de ataque do lobo-ibérico a pessoas pelo menos há 100 anos.”
História e identidade
O projeto para se criar um ecomuseu com vários polos nasceu em 2009, “da necessidade de preservar a nossa cultura, história e identidade; é o museu do território, porta de entrada em Terras do Barroso [território que inclui Montalegre e Boticas]”, diz Nuno Otelo Rodrigues, chefe da divisão de turismo da Câmara Municipal de Montalegre. O primeiro polo a abrir foi a CASA DO CAPITÃO, na vila de Salto, ainda antes da sede em Montalegre, o espaço Padre Fontes, que inaugurou alguns meses depois.
Salto, solar da raça barrosã, “é um dos centros agrícolas mais importantes do concelho”, refere Pedro Araújo, responsável pelo polo, nascido da reabilitação de uma antiga casa de lavoura tradicional, “com uma traça já mais minhota”. O percurso expositivo permite identificar a função original dos espaços, como por exemplo, onde se guardavam as alfaias, ou a sala onde as mulheres costuravam. No século XIX, esta era a casa do capitão de milícias da aldeia, que representava o regedor do município. O capitão era escolhido entre os lavradores mais poderosos e o edifício era considerada a maior da região do Baixo Barroso. Em caso de conflito, competia-lhe arregimentar os outros agricultores e fazer uma defesa miliciana.
Foi requalificada no início dos anos 2000, depois de ter funcionado como quartel dos bombeiros. Depois de um incêndio, a Câmara de Montalegre pegou no espaço para o transformar neste museu “tipicamente etnográfico”. “Aqui, temos muita afinidade com o Minho, e o pastoreio do gado é diferente do que encontramos no Alto Barroso”, prossegue Pedro Araújo. “O comunitarismo não é tão presente. Os meios de sobrevivência são mais abundantes e acessíveis do que nas áreas de alta montanha. Isto é importante para se perceber que o território não é homogéneo”.
Salto é conhecida por ser o “solar da raça barrosã”, pois é no planalto que vai de Montalegre até Boticas que este gado encontra casa privilegiada.
Já não há pastores
Todos os dias, JOÃO POÇAS sobe da sua casa na aldeia da Corva, Salto, até ao planalto para deixar o gado a pastorear no baldio. Criador da raça barrosã DOP, em produção biológica, tem atualmente 90 fêmeas. “Desde criança que trabalho nisto”, afirma. Primeiro com os pais e agora sozinho, pois aos 18 anos ficou a tomar conta da exploração. Muito mudou desde a infância: “Já não há pastores. Agora, vimos cá acima cuidar dos animais e descemos para ir tratar de outras coisas”. Antes, “ficavam sete ou oito pessoas em casa a fazer o resto e podíamos vir sossegados com o gado para o monte. Agora não dá. Somos também agricultores, temos de fazer tudo”.
Durante o inverno só ele e outro produtor vão para ali; no verão são mais, mas mesmo assim pouco para a necessidade dos baldios. “O gado é que equilibra o ecossistema. Fico triste quando se gasta dinheiro a ‘derreter’ mato porque passados dois ou três anos tem de se gastar outra vez. Se houver animais e pastoreio, eles limpam a serra, o mato não cresce e não há incêndios.” Antigamente, estas serras estavam cheias de vacas e cabras.
E é nesta carne que os restaurantes locais apostam para mostrar o sabor da região, como é o caso da TAVERNA DO MERCADO, projeto da empreendedora família Gonçalves, de Montalegre. Os irmãos Francisco e Paulo abriram este restaurante acolhedor como forma de complementar outros negócios da família, como os vinhos Montalegre e o alojamento Casa da Avó Chiquinha. Quem for petiscar ou jantar no restaurante percebe que aqui sobressai a “cozinha de memória”, como as alheiras ou a chouriça, ambas caseiras, feitas pela mãe Idalina, miminhos crocantes de queijo de cabra e presunto ou pataniscas. Nos pratos principais destaca-se a posta e a costeleta, bem como o cabrito frito, servido com esparregado e batata a murro. Outro acompanhamento com muita saída é o arroz de feijão. O vinho que chega às mesas é precisamente o Montalegre, elaborado pelo enólogo da família, Francisco. Este é o único vinho produzido em Montalegre e a família tem a vinha mais alta de Portugal, a 1070 metros. Para já, está a ser utilizada para algumas experiências. Mas é também naquela altitude que elaboram os vinhos, produzidos com uvas de várias localidades transmontanas, como Chaves, Valpaços ou o Planalto Mirandês.
Há várias décadas que esta inquieta família põe Montalegre a mexer. Onde funciona agora a CASA DA AVÓ CHIQUINHA existiu, nos anos 1990, a discoteca da vila. “Eu era o DJ. Sempre gostei muito de música e, hoje, são os meus sobrinhos que me vão instruindo. Agora voltei a passar música aos fins de semana”, conta Francisco. O alojamento, renovado em 2015, está aberto há 20 anos. “É um projeto de toda a família”, diz Idalina Gomes, conhecida por avó Chiquinha, porque os netos assim a tratam devido ao avô se chamar Francisco. “Nós apoiamos as ideias uns dos outros. Apesar de já não ter idade para trabalhar, acho que ainda sou útil, ainda posso ajudá-los, porque recebo muita gente e gosto de conversar.” Além disso, faz questão de servir sempre o pequeno-almoço aos hóspedes.
A renovação de há nove anos dotou a casa de nove quartos duplos. No exterior há uma piscina aquecida e a vista sobre o Gerês é uma inestimável mais-valia. Apesar de não ter restaurante, organizam jantares temáticos para grupos, como normalmente acontece nas sextas-feiras 13, quando Montalegre se enche de foliões para celebrar a data. É uma das maiores festas populares do país e a próxima, primeira do ano, vai ser em setembro (ver caixa).
Francisco acredita que as coisas têm evoluído em Montalegre. Apesar de continuarem um pouco isolados, há cada vez mais gente, seja nas sextas 13, seja noutras ocasiões. “Montalegre tem um calendário de animação turística, desportiva e cultural vasto. Nessas alturas, estamos sempre cheios. Fora isso, é pontual, mas tem corrido bem.”
O aumento do interesse pelas Terras do Barroso proporciona a abertura de vários negócios de gente local. Como é também exemplo o restaurante 7 MARAVILHAS, situado em Vilarinho de Negrões e aberto desde 2020, nas margens da albufeira do Alto Rabagão. João Martins, que nasceu e cresceu naquela aldeia, adquiriu os dois palheiros onde montou o restaurante, em 2004. Para as mesas vão pratos tradicionais. Não faltam os enchidos, o bacalhau e a carne barrosã. Na época dele, também há cozido barrosão, prato que com as suas carnes e vegetais, é a expressão máxima desta região património agrícola mundial.
Sexta-feira 13, dia de festa em Montalegre
Em setembro, acontece a primeira sexta-feira 13 do ano. Desde 2002 que se celebra com grande festa esta noite de bruxas. As primeiras edições, mais pequenas, reuniam o público no castelo da vila. Hoje, a localidade é pequena para tanta gente que lá vai passar essa noite. Uma das grandes inspirações da festa foi o famoso Padre Fontes, que iniciou também o encontro de medicina popular em Vilar de Perdizes. Como um dos grandes divulgadores da região e das suas tradições, tem um polo do Ecomuseu a si dedicado, precisamente em Montalegre, mesmo ao lado do castelo. Uma forma de conhecer a vida e a obra do padre etnólogo e historiador, agora com 84 anos, que nem sequer acredita em bruxas e feitiços, mas sim no poder da palavra e da cultura do seu povo.
Longitude : -8.2245
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