Um passeio pelas cidades criativas da UNESCO, entre livros, adufes e lã

Leiria, Cidade Criativa da Música. (Fotografia de Pedro Cerqueira/Plate Creative Studio)
A região centro integra cinco cidades criativas da UNESCO. Há muito para descobrir em Leiria, Caldas da Rainha, Óbidos, Covilhã e Idanha-a-Nova.

Na Igreja da Misericórdia – agora dessacralizada – Tó Casal ajeita os auscultadores e alinha os cântaros de barro (feitos à mão pelos oleiros da Bajouca). É dali que sairá o som, não tarda nada, num original mini-concerto. O músico percussionista faz jus ao título que Leiria ostenta desde 2019: é cidade criativa da UNESCO na área da música. E isso sente-se ali, no antigo templo, hoje Centro de Diálogo Intercultural, mas também em cada rua da zona história que inspirou “O crime do padre Amaro”, ao tempo em que Eça de Queiroz morava na cidade, pois que ali desempenhava funções de administrador do concelho.

São as mesmas ruas que em junho se enchem de modernidade e culturas alternativas, através do Festival A Porta, em agosto se rendem à cultura gótica com o Extramuralhas, mas em março, abril ou maio sossegam para ouvir os concertos do Música em Leiria, um dos mais antigos festivais do país (este ano cumpriu a 40.ª edição) dedicado à música clássica. Esta é a cidade onde o maestro Paulo Lameiro criou os concertos para bebés, que ainda hoje acontecem, não muito longe dali, no Teatro Miguel Franco.

Entramos na mesma Sé descrita no conto de Eça que alberga, afinal, o órgão construído numa pequena cidade alemã, em plena floresta negra, há 25 anos, e que por estes dias assinala a efeméride com um naipe de concertos. Não admira, por isso, que ali tenha nascido um café dedicado ao escritor: o Espaço Eça, criado por Susana Ventura e Luís Ferreira em 2014. Lá dentro, tudo homenageia o escritor. Susana é artesã, e por isso tem em exposição peças diversas alusivas. Na mesma Rua Barão de Viamonte (que todos conhecem como Rua Direita – mesmo que seja torta) sobrevivem ainda algumas lojas emblemáticas: a chapelaria Liz é uma delas. O centro histórico vive a duas velocidades. De dia é (ainda) um ponto de comércio, de noite transforma-se em romaria dos estudantes do Politécnico.

“A rua direita é torta/o sino está fora da sé/o rio corre ao contrário/em Leiria tudo assim é”. O velho ditado atravessa gerações e desemboca agora na Praça Rodrigues Lobo, onde Vasco Ferreira criou a diversidade no universo da restauração. É outono, alguns ainda se aventuram à esplanada do Mata-Bicho, outros preferem o conforto do Chico-Lobo, a condizer com o lombo assado com castanhas. Mais tarde, haverá brisas do Liz para a sobremesa, o doce típico de Leiria à base de ovos, açúcar e amêndoa a que ninguém resiste. Uma melodia de sabor.

Caldas é outra louça
No mesmo distrito de Leiria, mas em direção ao oeste, a rede da UNESCO integra mais duas cidades criativas: Caldas da Rainha e Óbidos. Nas Caldas é difícil escolher o que fazer, o que visitar. Podíamos ficar só pelo magnífico Parque D. Carlos I, multicolor nesta altura do ano: a terracota do chão, o lago, os patos, os pavões que se passeiam nos terraços da cidade e voam até aos beirais dos prédios antigos e dali observam todo o movimento. O parque encerra todo o naturalismo e romantismo com que o arquiteto Rodrigo Berquó o desenhou, nos finais do século XIX.

É uma espécie de floresta encantada no meio da cidade, ligando-a, sob um “céu de vidro” ao Hospital Termal, pioneiro no mundo a “curar certas maleitas”. Foi assim, através das “águas mornas e com características especiais”, que a rainha D. Leonor descobriu a terra onde a realeza e a fidalguia haveriam de encontrar um porto de abrigo no antigamente. Atravessá-lo permite chegar ao museu José Malhoa, o primeiro edifício a ser construído em Portugal exclusivamente com essa finalidade.

A cidade acabaria por tornar-se palco de várias artes, muito com a ajuda de Rafael Bordallo Pinheiro. O museu e a loja da fábrica ajudam a explicar essa história, assim como a Rota Bordaliana, um percurso através das figuras que criou, desde o icónico Zé Povinho ao Padre Cura, passando pelos animais, até à folha de couve. Esta é a cidade criativa da UNESCO na área do artesanato e artes populares, onde os mestres da Escola Superior de Arte e Design, ligada ao Instituto Politécnico de Leiria, muito foram beber. Foi de lá que vieram os artistas que trabalham agora no coletivo ADOC – Associação Design Ofícios e Cultura. Encontramos ali Eneida Tavares, Tânia Martins e Samuel Reis, dedicados a oficinas que vão desde a cestaria à cerâmica. Eles, como tantos outros, vieram de longe para estudar nas Caldas e ali ficaram. Eneida vai trabalhando um cesto à base de caruma de pinheiro. Enquanto isso, Samuel, natural de Lagos, licenciado em design industrial e mestre em design de produto, dedica-se ao vidro soprado. “É um trabalho de paciência, sobretudo”, explica Eneida, à medida que faz crescer mais uma peça.

Na ADOC organizam-se também workshops, conversas com artistas e feiras de autor. A ponte entre o passado e o futuro da arte nas Caldas da Rainha está ali. Quem bem o percebeu foi Paulo Santos, o autor do pastel vencedor do concurso promovido pela Associação Comercial em 2017, que pretendia “encontrar um novo ícone da doçaria caldense”, que se juntasse às cavacas e beijinhos. Foi assim que nasceu o pastel Bordalo, de grão de bico, amêndoa, ovos, açúcar, canela e queijo de mistura. Que se tornou um caso sério de sucesso. Em 2013, o professor do curso de Pastelaria Avançada abriu um dos espaços mais concorridos da cidade – o Forno do Beco – e já este ano deu mais um passo: o restaurante Trigo e Bolota, onde agora vende, à mesa, todas as iguarias que nos últimos anos se tornaram conhecidas naquele cantinho em forma de padaria no centro da cidade. Natural da Covilhã – outra das cidades criativas da região centro – Paulo empresta agora às Caldas a sua arte de bem cozinhar.

Livros e Óbidos, um casamento perfeito
A oeste, há sempre algo de novo. Sobretudo quando falamos de Óbidos, a vila medieval que continua a bater recordes de visitas todos os anos, mesmo em tempo de pandemia. Distinguida pela UNESCO como vila literária no âmbito da rede das cidades criativas, no outono casa com o Fólio, festival que conquistou um lugar importante na agenda cultural do país. Percorremos a Rua Direita depois de uma paragem no Mercado Biológico, que é, afinal, uma livraria onde também se vendem frutas e legumes. Em Óbidos, os turistas crescem e multiplicam-se à procura da célebre ginja, agora muito apreciada em copo de chocolate, mas também de todo o artesanato que povoa as entradas das lojas. Ao fundo, perto do castelo, a Livraria Santiago esconde os segredos mais bem guardados da cultura local: Natália Santos, a poeta rendeira de Óbidos, faz quadras populares enquanto tece renda de bilros. Começou aos nove anos e nunca mais parou, mas nos últimos seis, depois dos 70, dedicou-se a tempo inteiro ao que dantes era apenas um hobby.

Carla Pinho, que representa Óbidos na rede de cidades criativas, leva-nos agora até à residência literária Ruy Belo, onde um jovem checo está agora a começar um livro, depois de se ter sagrado vencedor da edição do ano passado do prémio Fernando Leite Couto. E Óbidos, que na rede da UNESCO é a única de língua portuguesa na área da literatura, tem sempre os braços abertos às letras. Telmo Faria, antigo presidente da Câmara, sabia disso. De resto, foi ele o mentor de muitas das iniciativas que desabrocharam mais tarde, mudando o rumo da vila que se fechava dentro da muralha. Foi assim que, depois de deixar a vida pública, abriu The Literary Man Óbidos Hotel. No último inventário havia 75 mil livros espalhados pelos diversos espaços. Uma experiência única.
O centro de Portugal é diverso e distante entre si. As quase três horas de viagem que demoram a percorrer os 250 quilómetros entre o Oeste e a Cova da Beira podem ser amenizados com uma paragem em Aveiro, que sonha ser Capital Europeia da Cultura em 2027.

A paz que há na serra
A chegada à Covilhã acontece ao entardecer e pede o aconchego do Puralã – Wool Valley Hotel & Spa. O hotel nasceu em 2017 e não é só uma homenagem aos filhos da terra, que – já se sabe – sempre se dedicaram a esta matéria prima da lã. “Se os filhos de Adão pecaram, os da Covilhã sempre cardaram”, diz o ditado. À cabeceira da cama, nas paredes dos quartos, cuidados troncos de madeira fazem pender fios de lã sobre as camas. A piscina interior, o spa e o restaurante são parte importante do cartão de visita deste hotel.

Quando amanhece, um pequeno-almoço abastado vai almofadar as caminhadas pelas ruelas da cidade, dedicada à arte urbana desde 2012. Foi quando os irmãos Pedro e Lara Seixo Rodrigues ali criaram o Wool, festival que tem vindo a crescer e deixar marca(s) nas paredes de toda a malha urbana. Quem conta essa história é Elisabet Carceller, depois da visita ao Museu da Covilhã, um espaço obrigatória numa passagem pela cidade. Nasceu no âmbito da candidatura a cidade criativa da UNESCO, que há um ano, a 8 de novembro, viu o seu nome inscrito na rede, através do design. Ali se conta o passado e presente da terra e da gente da Covilhã, com a particularidade de haver um espaço já dedicado ao futuro – incomum nos museus.

Junto à Universidade da Beira Interior, o museu dos lanifícios clama por uma visita demorada, de modo a compreender toda a história da cidade-fábrica, noutro tempo apelidada de Manchester portuguesa. Dali seguimos para uma das novidades da gastronomia local: o restaurante Açafrão, integrado nas instalações do Pena D’Água – Boutique Hotel & Villas, mas aberto ao público em geral. O promotor é Ricardo Ramos, que já era proprietário da Taberna A Laranjinha, e que em dezembro do ano passado decidiu homenagear Pêro da Covilhã dedicando-lhe um espaço. É por isso que as especiarias assumem especial destaque na ementa, toda ela pensada a partir das melhores iguarias da Cova da Beira.

Ao som das adufeiras
Um céu raiado de múltiplos tons acompanha-nos agora na viagem até à próxima cidade criativa da música, agora na Beira Baixa, que é Idanha-a-Nova. Maria José Caroço tem as mãos calejadas da agulha grossa, mas também da pele de ovelha com que, todos os dias, constrói adufes. É a derradeira de 12 mulheres que nos anos 1990 integraram uma formação alusiva a este instrumento típico da região. Atualmente, é uma das últimas quatro pessoas que fazem adufes no concelho. No Centro de Artes Tradicionais, é um deleite acompanhar este processo. “Lá dentro pomos caricas, ou pedrinhas, ou sementes”, conta ela, enquanto cose a fita “que lhe dá mais graça”. Quanto maior o adufe, melhor toca, revela.

Adufeiras do Rancho Etnográfico de Idanha-a-Nova. (Fotografia de Pedro Cerqueira/Plate Creative Studio)

Ao chegar ao Centro Cultural Raiano, ouvem-se as primeiras batidas do grupo das Adufeiras do Rancho Etnográfico de Idanha-a-Nova. Rita Abrantes é a única que não toca, num grupo que alberga 30 mulheres, dos nove aos 73 anos. “Em 1998 ficámos sem rapazes para dançar, e assim nasceu o grupo”, conta Rita. No Centro, junto às alfaias em exposição, que lembram um tempo de trabalho árduo e campos cultivados, ouve-se a moda da “Senhora do Almortão”.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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