Passou toda a vida a cultivar a terra. Filha de lavradores da aldeia de Arroios (Vila Real), é, agora, uma das responsáveis pela recuperação do tomate coração de boi do Douro, tendo sido a vencedora da edição do ano passado do Concurso do Tomate Coração de Boi do Douro. A pouco mais de um mês de uma nova edição, a nona, a 23 de agosto, ZULMIRA SILVA abriu à Evasões as portas da horta, onde os pés de tomateiros estão altos e os frutos rechonchudos. “Falta o pintor”, diz, referindo-se ao défice de maturação que daqui a nada deixa os tomates em vermelho vivo. Da vida de muito trabalho, sente agora recompensa pela atenção que o seu tomate coração de boi tem merecido. “O meu pai era carreiro, andava com as vacas e os arados a acartar pedra. A minha mãe também trabalhava muito. Eu era o braço direito. Os meus irmãos estavam em Lisboa e eu como era solteira tive de olhar por eles. Quando morreram, continuei a cultivar”, conta.
Já os pais, como era costume nas populações rurais do Douro, plantavam o tomate coração de boi, principalmente para consumo próprio, sendo o excesso vendido no mercado. Produto sazonal, que dá desde finais de julho até outubro, a variedade que aqui se planta pelo menos desde o século XVIII é conhecida pelo seu generoso tamanho, película fina, textura carnuda, poucas sementes e sabor doce e terroso, com alguma acidez. Em Arroios, encontra condições ótimas para se desenvolver. É uma aldeia fértil, a água da nascente é gerida pela população e o solo de xisto tem a vantagem de permitir que a água escorra, conservando a humidade, até porque as plantas não gostam de estar encharcadas.
“Esta loucura do tomate começou de forma muito natural, graças à minha ligação com dona Zulmira”, explica Celeste Pereira, antiga jornalista que há cerca de 20 anos foi viver com a família para Arroios e agora organiza e promove o concurso e tudo à volta com a sua empresa Greengrape. “De certa forma, foi ela que inspirou o concurso. Começou a fornecer-nos tomate e nós provávamos com amigos. Depois da época do tomate, vinham a cebola, a batata, os grelos… Toda a gente adorava os produtos da dona Zulmira.”
A ideia do concurso nasceu em conversas entre Celeste e vários amigos. Abílio Tavares da Silva, produtor da Quinta de Foz Torto, perto do Pinhão, insistia que os tomates da sua quinta eram superiores aos de Arroios. Daí a ideia das provas cegas. Edgardo Pacheco, jornalista e crítico de gastronomia, e agora curador do evento, teve a ideia de criar a disputa.
A primeira edição do Concurso do Tomate Coração de Boi do Douro realizou-se em 2016, na Quinta Dona Matilde, um ano depois de a empresa de Celeste Pereira ter dado início ao Projeto Capella, que, em ambiente de festa, promove e vende produtos de agricultores locais na Capela Barroca de Arroios.
Participante desde o primeiro ano, só na oitava edição Zulmira conseguiu ganhar. “Foi a minha amiga dona Celeste que tratou de eu entrar no concurso, ela é minha mãe”, brinca. “Achei a ideia boa e entusiasmei-me mais desde que o senhor Daniel [Gomes, chef do restaurante Cais da Villa, em Vila Real] começou a vir buscar-me tomates.”
“No ano passado, toda a gente que passava pelo cesto de tomates da dona Zulmira dizia, ‘Vai ganhar esta’”, lembra Celeste. De esclarecer que o aspeto do fruto inteiro não é fator de avaliação, pois aos jurados chega apenas uma fatia, sendo a prova cega. Seja como for, acabou mesmo por ganhar e é agora “a mulher mais famosa de Arroios”, brinca Celeste. “Depois de velha é que estou famosa”, ri Zulmira. “Fiquei feliz, toda a gente me ligava e fui à televisão.” Neste ano, vai voltar a participar, mas a concorrência é cada vez maior. Até porque o impacto do concurso tem estimulado muita gente a recuperar esta cultura centenária.
Mãos na cozinha, pés na horta
Quando Vítor Oliveira chegou à QUINTA DE SÃO LUIZ, em Tabuaço, a horta estava totalmente abandonada. “Eram só silvas”, comenta o chef, que desde 7 de julho do ano passado lidera o restaurante do hotel The Vine House, situado na quinta de onde saem os vinhos Kopke, pertencente à Sogevinus, que a adquiriu em 2006. Pela primeira vez vão sair daqui tomates coração de boi para o concurso.
Mas trabalhar a horta tem um objetivo bem mais vasto. Quando o convidaram a abrir o primeiro restaurante da quinta, em janeiro de 2023, visitou o espaço com Sandra Tavares, com quem partilha trabalho e vida há vários anos (juntos gerem a empresa Gulae Food Wine and Friends, que contrata e aloca chefs a projetos). Quando a Sogevinus os contactou, apresentaram a proposta que “melhor se adaptaria ao espaço”, conta Vítor.
“A ideia foi desde logo fazer uma cozinha de produto e não um fine dining. Queremos aproveitar o potencial das quintas do grupo [além desta, fazem parte a Quinta do Arnozelo, a do Bairro e a da Boavista], mas principalmente a de São Luiz.” Bairradino e filho de agricultores, Vítor cresceu “na terra”. “Não é muito anormal ver o Vítor de jaleca e galochas no meio da quinta”, ri Sandra, acrescentando que este projeto lhe caiu que nem uma luva “porque tem conhecimento de agricultura, do território e da sazonalidade dos produtos”.
A horta de cinco patamares está a ser recuperada aos poucos. Conta já com plantações várias, mais de 200 pés de cebolinho, pepino, várias couves, morangos e, claro, tomate. Além da horta, toda a quinta é pontuada com árvores de fruto. Das muitas laranjeiras vêm as laranjas para o sumo natural do pequeno-almoço e para a torta servida às refeições. As figueiras dão fruto para compotas e sobremesas, mas há também muitas macieiras, amendoeiras, marmeleiros… “Vamos agora receber as primeiras azeitonas de conserva apanhadas nas nossas oliveiras”, diz Vítor.
A carta do restaurante reflete o espírito com que encaram o projeto. “Só a santola e o bacalhau é que não são daqui da região. De resto, usamos porco bísaro e a vaca é arouquesa, de um produtor de Tabuaço”. O queijo com que prepara um dos pratos de tomate coração de boi – carpaccio de tomate e queijo fresco de cabra e ovelha – é produzido a 20 quilómetros. Este prato foi pensado para integrar a rota do qual o restaurante faz parte pela primeira vez. Haverá outra entrada de tomate, apenas com sal e azeite, e um deslumbrante tomate assado.
Todos os rótulos servidos no restaurante são da Sogevinus, exceto um espumante que o chef foi buscar à sua Bairrada natal.
Quem do Douro faz casa
Pela segunda vez na rota está o mais recente restaurante da família Geadas, o BISTRÔ TERRACE. De Bragança, no nordeste transmontano, onde gerem o seu estrela Michelin G, António Geadas e Óscar Geadas, o chef de cozinha, rumaram ao Douro e instalaram-se na Quinta do Tedo, onde se produz principalmente vinho do Porto. No ano passado, alguns meses depois de terem aberto portas, estiveram presentes na rota do coração de boi com um prato onde se juntava o bom tomate ao bacalhau. Este ano, aliam a tradição transmontana dos cuscos de Vinhais com tomate e carabineiro, elemento já clássico nas suas cartas.
Os Geadas chegaram ao Douro a convite da família Bouchard, que adquiriu a QUINTA DO TEDO, em Armamar, corria o ano 1992. Antes deles, foram os irmãos Paolo e Odile Bouchard, filhos de Kay e Vincent Bouchard, que abriram em 2016 este espaço de restauração. Não foi por acaso que esta família franco-americana foi parar ao Douro. “Somos uma família cliché dos vinhos”, brinca Odile, mostrando na adega os três painéis de azulejos que são referência da história do clã: Napa Valley (Califórnia, EUA), Beaune (Borgonha, França) e claro, o Douro e a sua Quinta do Tedo. “O meu pai é da Borgonha, a minha mãe é americana e nós temos outra empresa que vende pipas e ânforas para envelhecer o vinho.”
A relação da família com Portugal vem de longe, pois França é um dos maiores consumidores de vinho do Porto. Ainda nos anos 1980, Kay e Vincent visitaram não só o Douro mas todo o país para fazer caminhadas. “Estavam também à procura de uma quinta com vinhas para produzir Porto e encontraram esta”, que remonta ao século XVIII e ainda tem dois marcos pombalinos, que demarcavam a zona de produção. Têm 14 hectares de vinha e quatro de oliveiras para azeite, tudo em produção biológica, o que aqui “não é complicado, visto ser uma zona árida, seca e as plantas estarem muito bem adaptadas”.
Odile nasceu na Califórnia, onde viveu dez anos até se mudar para Itália com a família. Regressou à costa oeste americana para estudar biologia. Depois, vieram a enologia, a hospitalidade e o marketing. No Douro, Odile faz um pouco de tudo. “Antigamente, a horta era lá em baixo, junto ao rio, mas mudámos mais para cima, pois ali era demasiado quente. Sempre tivemos cebolas, pepinos, favas, tomates… também não nos faltam árvores de fruto, como pessegueiros, diospireiros e figueiras.”
Tudo o que ali se produz é para consumo da casa, que aposta fortemente no enoturismo, tendo por isso uma equipa de funcionários bastante grande. Nos últimos anos, têm apresentado a concurso tomate que produzem, e 2024 será o primeiro ano em que levam tomate da nova horta. “Nos Estados Unidos também temos coração de boi, chamamos beefsteak tomato e é bastante valorizado, como aqui também deve ser”, diz Kay.
Não é novidade que o Douro seduz muitos estrangeiros que o visitam e que acabam por fazer dele casa. Mas a região também se faz com quem lá nasceu e sempre viveu, e que dela tira o melhor para a mostrar e promover. É o caso de Graça Gomes, que em 2010 abriu o restaurante TOCA DA RAPOSA, na sua terra natal, Ervedosa do Douro. Filha de lavradores, começou a trabalhar aos sete anos, na entrega de leite. “Quando ia para a escola, levava os livros e os garrafões ou as leiteiras e deixava-as às portas das senhoras que compravam o leite”, recorda. Desde que se lembra que sempre teve muito trabalho, mas também tinha tudo à disposição, das hortaliças aos animais. “Toda a vida tive sangue para o negócio.”
Explorou um café de um primo e depois abriu uma frutaria, a primeira da terra. Ia à Régua de madrugada comprar os produtos que os agricultores vendiam. “Nesta freguesia, fui quem deu a conhecer o que era uma banca de legumes, não havia nada disso.” Depois, acrescentou produtos de supermercado à frutaria. Foi o filho mais velho, Fernando (à frente de outro restaurante da região, o Cais da Ferradosa) que a convenceu a transformar o espaço num restaurante. Abriu na primeira semana de setembro de 2010 e logo começou a ganhar prémios com alguns dos seus pratos, como a meada de cabrito, que aprendeu a fazer na infância com a mãe. De resto, tudo o que aqui serve é duriense e remete para as memórias da família, como os milhos de bacalhau, o arroz de feijão com salpicão ou o ensopado de javali.
Ao lado da filha Rosário e de Marius, o marido desta, Graça Gomes tem tanto gosto em cozinhar como em conviver com os clientes. “Quando alguém vem cá fazer uma refeição não quer só comer e ir embora. A sala é pequena e a cozinha que fazemos é muito trabalhosa. As pessoas querem atenção, saber o que estão a comer ou como se faz determinado prato. Eu, mesmo sem falar inglês, consigo entender-me com os clientes de fora.”
Por esta altura, o restaurante já está a servir os seus pratos com tomate coração de boi. Para entrada, há sempre um tomate fatiado e temperado apenas com sal e azeite. Tem de estar no ponto ótimo de maturação. “Na minha infância, íamos à horta, tirávamos o tomate maduro e comíamos logo, sem nada. Ficávamos deliciados”, lembra. Depois, vem a sopa de tomate e os milhos de tomate. “Muita gente não conhece os milhos do Douro. É parecido com o xerém algarvio, feito com milho triturado, mas não muito fino.” Os milhos podem acompanhar, por exemplo, carne grelhada, pernil no forno ou pataniscas de bacalhau, tal como a açorda ou o arroz de tomate, que também fazem parte da ementa da época.
Para sobremesa, criaram um gelado de queijo de cabra acompanhado de compota de tomate coração de boi. É uma espécie de Romeu e Julieta duriense. Uma evidência de amor e respeito pela terra e os seus produtos.
Casa de Mateus
Um concurso, uma festa, um jantar e um livro
É na Casa de Mateus, em Vila Real, que em 2019 inaugurou a horta-jardim com vertente pedagógica e científica, e onde também se produz tomate coração de boi, que se realiza a nona edição do Concurso do Tomate Coração de Boi do Douro. Os 14 jurados, jornalistas e profissionais ligados à gastronomia, entre eles o chef Miguel Castro Silva, associado ao evento desde o início, começam a avaliar os frutos pelas 14.30 horas de 23 de agosto.
Teresa Albuquerque, diretora da Fundação Casa de Mateus, apresenta o roteiro do dia, já com lotação esgotada: às 18 horas, os participantes serão recebidos no bar. São depois convidados a ir à frasqueira, onde o tomate fica exposto e onde se vê uma mostra de Manuel Casimiro. Também são convidados a ir à exposição de Miguel Palma. O lançamento do livro “Tomate coração de boi do Douro – A outra riqueza do vale mágico” será no pátio interior. Depois, vai-se pelo jardim até à eira, onde é servido o jantar volante.
Entretanto, a convidada italiana Erika Zandonai, especialista na defesa e promoção de produtos tradicionais, nomeadamente do tomate, vai partilhar a sua experiência no tratamento e transformação deste fruto. O livro, com várias colaborações, conta a história do tomate, desde o tempo em que a planta veio da América, até se popularizar na Europa, discutindo-se também a origem desta variedade específica. Apresenta várias receitas onde o coração de boi é protagonista. Pode ser descarregado gratuitamente no site tomate-coracao-de-boi-do-douro.com, tal como o guia de boas práticas para o seu cultivo.
A participação no evento custa 60 euros e a inscrição deve ser feita através do email [email protected]. A festa no dia seguinte, na Capela Barroca de Arroios, é grátis e conta com provas comentadas de tomate, azeite e sal, e com vários vinhos do Douro.
Agenda
Festa do Tomate Coração de Boi do Douro
23 de agosto, 18h
Casa de Mateus
Largo Morgados de Mateus, Vila Real
Concurso com jantar volante e lançamento do livro “Tomate coração de boi do Douro – A outra riqueza do vale mágico” (já com lotação esgotada)
24 de agosto, 17h30
Capela Barroca de Arroios
Arroios, Vila Real
Festa do Tomate À Capella, com venda e provas
Todo o mês de agosto
Mês do tomate em 22 restaurantes aderentes (ver lista abaixo)
Restaurantes aderentes
Bistrô Terrace
Quinta do Tedo, Armamar
Tel.: 910 832 707
Bomfim 1896 by Pedro Lemos
Quinta do Bonfim, Pinhão
Tel.: 254 730 360
Bons Tempos
Vila Real
Tel.: 963 626 564
Cais da Ferradosa
São João da Pesqueira
Tel.: 254 402 899
Cais da Villa
Vila Real
Tel.: 259 351 209
Calça Curta
Foz Tua
Tel.: 278 685 255
Cantina de Ventozelo
Quinta de Ventozelo, São João da Pesqueira
Tel.: 254 249 670
Castas e Pratos
Peso da Régua
Tel.: 254 323 290º-
Cêpa Torta
Alijó
Tel.: 259 950 177
ChaXoila
Vila Real
Tel.: 259 322 654
Cozinha da Clara
Quinta de la Rosa, Pinhão
Tel.:938 344 549
DOC
Armamar
Tel.: 254 858 123
Flor de Sal
Mirandela
Tel.: 278 203 063
O Lagar
Torre de Moncorvo
Tel.: 279 252 828
Quinta do Portal
Sabrosa
Tel.: 968 120 127
Rabelo
Vintage House Hotel, Pinhão
Tel.: 254 730 230
Seixo by Vasco Coelho Santos
Quinta do Seixo, Tabuaço
Tel.: 937 021 206
Taberna do Carró
Torre de Moncorvo
Tel.: 965 542 387
The Wine House
Quinta da Pacheca, Lamego
Tel.: 254 331 229
Vale Abraão
Hotel Six Senses, Lamego
Tel.: 254 660 661
Longitude : -8.2245
Longitude : -8.2245
Longitude : -8.2245
Longitude : -7.474213999999961
Longitude : -7.640394000000015