Serra de Aire: encostas de tradição viva e olhos no futuro

Serra de Aire: encostas de tradição viva e olhos no futuro
As grutas da Serra de Aire chamam turistas de todo o mundo à região Centro, mas estas encostas dominadas por maciço calcário têm muito mais para oferecer no que toca ao turismo de natureza. As raízes da tradição sentem-se na gastronomia regional que se serve à mesa e nos ofícios artesanais que foram entretanto recuperados.

Caminha em passo firme, em ritmo constante. Rui Anastácio conhece estes trilhos melhor do que a palma da própria mão. «Olha, o tomilho já está a crescer», observa o proprietário do Cooking and Nature – Emotional Hotel, o sossegado e apaixonante turismo de natureza de Alvados que tem ajudado a virar atenções para a Serra de Aire nos últimos sete anos.

É pelas encostas deste parque natural que se fazem os percursos pedestres, de bicicleta ou equestres organizados por este quatro estrelas. Estão sinalizados e podem ser feitos de forma independente, ou com guia. Qualquer que seja a direção ou a distância percorrida – que vai até aos 70 quilómetros, passando pela Nazaré e Alcobaça, a moldura é um regalo ao olhar. A fazer companhia ao maçiço calcário estão campos de alecrim, mentas selvagens e de quase 30 espécies de orquídeas, para além de oliveiras, carvalhos, medronheiros e loureiros.

 

 

Árvores e plantas que servem não só para vestir a serra, mas que são também aproveitados na cozinha do Cooking and Nature. Agora e no futuro. «Quero produzir o meu próprio azeite, mas tem que ser algo diferenciador», conta Rui, adiantando que, em tempos, já se produziu 200 mil litros de azeite na aldeia de Alvados, por ano.

E se lá fora se caminha ao ar livre e se enche os pulmões de ar puro, nos 12 quartos, com capacidade para duas e quatro pessoas, o verbo imperativo é descansar. Alguns têm vista para a piscina exterior, rodeada de oliveiras, para a zona de redes de descanso ou para a área de fogueira que ali se acende de noite, e ao redor da qual se pode estar a conversar. Alguns têm, também, duche na varanda, ideal para dias de calor. Mas de todos os quartos se vê a Serra de Aire a espreitar por entre as janelas.

Saudade, curiosidade, alegria, simplicidade, luxúria, aventura. Cada quarto está ligado a uma emoção e a um filme, e isso reflete-se na decoração e cores escolhidas. No Saudade, por exemplo, há versos de Amália nas paredes e um papel de parede com cartas e postais. Já no Luxúria, impera o ambiente boémio do «Moulin Rouge».

Nas salas de estar comuns, onde se acendem as lareiras e há sofás com motivos florais, convida-se a retroceder a tempos que já foram mais calmos. Como se vê com a máquina de escrever junto ao bar self-service e aberto 24 horas por dia, onde se pode redigir mensagens e colocá-las numa árvore.

Ali ao lado funciona o restaurante, com curadoria do chef Nuno Barros, que aqui aposta totalmente nos produtos portugueses. Pode escolher-se à carta ou optar-se pela lição de cozinha. Uma atividade para miúdos e graúdos onde se aprende sobre cozinha e se faz o próprio jantar – com calma e com ajuda de um profissional, claro. Vá por nós: a refeição sabe melhor no final e ficará na memória. A parte boa: lavar a loiça fica por conta da casa.

 

À mesa de dois clássicos da serra
Trata quem vai entrando no restaurante pelo nome. Aperta mãos, pergunta como está a família. O espaço está cheio, a um dia normal de semana, na pequena localidade de Alcaria. João Ribeiro nasceu ali, foi para o Canadá em criança com a família para fugir a Salazar e voltou em adulto. Desde então, soube fidelizar o público com o seu bem-receber e os sabores regionais à mesa. É assim há quase 20 anos no Cova da Velha.

Antes disso, foi um entreposto para se trocarem mulas que traziam peixe da Nazaré e depois transformou-se num bar. O crescimento do turismo levou o dono a modernizar o espaço e potenciar o seu lado de restaurante. Hoje, come-se aqui num ambiente acolhedor, onde há zonas de lareira e janelas com vista para a serra. As mesas estão espaçadas entre si, de propósito, para se criar alguma intimidade. «Estamos na serra. Tem que haver tempo e espaço para comer», atira José.

Os assados no forno têm uma forte presença na carta e aposta-se em proteínas como o borrego, a vitela, o porco preto e o javali, acompanhados com batatinha, grelos e couves. O cabrito no forno já é um clássico do restaurante. «São as ervas frescas da nossa serra, como o tojo e o alecrim, que fazem a diferença», conta o dono. A sua mulher, Mafalda, é a responsável pelas sobremesas, das quais se destaca o pudim de pão com gelado de caramelo, feito com pão caseiro de Alcaria.

Pelas paredes estão imagens da Serra de Aire, em especial da Fórnea, uma formação geológica que se assemelha a um anfiteatro natural e que já é uma imagem-postal desta região. Fica muito próximo da Cova da Velha e o caminho até lá faz-se, maioritariamente, a pé, durante cerca de 20 minutos. Em algumas alturas do ano, uma cascata que corre por esta depressão faz a delícia dos visitantes e é local obrigatório para tirar uma fotografia.

Tão obrigatório como foi e continua a ser o Dom Abade, a 15 minutos de carro dali. Fica em Santeira, junto à IC2, e serve, há quase quatro décadas, quem por ali passa de viagem. Em tempos, chegaram a receber, por dia, 60 autocarros cheios de turistas, o que os obrigava a fechar apenas duas horas durante a madrugada. A chegada da A1, nos anos 90, levou o restaurante a expandir-se em espaço e em propostas gastronómicas.

É aqui que se serve a morcela de arroz, um dos produtos mais característicos desta região. É produzida localmente, em Leiria. «A versão normal é servida com migas, mas aqui fazemos de forma diferente», conta Célia Volante, mulher do proprietário, Mário. Aqui, vem com abacaxi grelhado, um casamento bem equilibrado no prato. A tradição serve-se à mesa com um polvo à lagareiro, mas também se come em risoto e confitado, ou com um bacalhau na grelha, com migas ou com batata. Nas carnes, destaque para os assados no forno, com o cabrito do monte e a chanfana. Para a despedida, apoia-se a economia local com um leite creme com maçã de Alcobaça confitada.
Os pequenos produtores locais, de resto, têm primazia, quer seja nos vinhos, ou nos frescos, que vêm todos de uma produtora vizinha que não trabalha com estufa. As doses são generosas, fica o aviso. E também há opção de buffet com vários pratos quentes e frios, todos os dias sem exceção. A digestão pode fazer-se pelo largo jardim de cinco mil metros quadrados em redor.

 

 

Viajar numa máquina do tempo
O tempo não volta para trás, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Mas o mais aproximado a uma máquina do tempo está em São Jorge, quando um antigo museu militar foi transformado, há uma década, no Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota (CIBA). Foi neste descampado, onde está hoje um jardim onde se pode e deve passear, que o Reino de Portugal e de Castela se defrontaram, em agosto de 1385. Um confronto que durou menos do que uma hora mas que manteve a independência portuguesa.

No museu do CIBA, refresca-se a memória de várias formas. Com painéis informativos sobre a batalha e seus protagonistas, com réplicas de armas usadas neste dia e ainda ossadas encontradas em escavações naquela zona, nos anos 50. Mas também com a projeção de um filme com atores portugueses, que conta como tudo se passou, num anfiteatro interativo onde elementos cénicos do palco se mexem.

A homenagem à era medieval faz-se em alguns pratos da zona de bar e restaurante, nos serviços de animação que dinamizam o espaço ou mesmo com a arquitetura paisagística em redor do CIBA. Desde urtigas a urzes, plantagos, gramineas, carvalhos, bétulas, pinheiros bravos e amieiros, recriou-se a moldura de plantas e árvores que existia em 1385.

 

O regresso das mantas de Minde
«Olho para ele todos os dias e não me canso», explica Maria Alzira, diretora do Museu de Aguarela Roque Gameiro, em Minde. Trata-se de um retrato da mãe deste artista e é considerado uma das obras-referência da aguarela portuguesa. Os seus olhos acompanham-nos pela sala, por onde quer que andemos. Este é um das centenas de obras expostas neste museu, o único dedicado a esta técnica de pintura, criado há uma década. É também um dos nove pólos do Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro, ligado a áreas como dança, restauro de móveis e música.

Mas também a tecelagem, tendo sido os responsáveis pelo ressurgimento do fabrico das mantas de Minde. «Desde os anos 70 que estavam em desuso e ninguém as fazia», conta a responsável. Na sala que serve como ateliê e loja das mantas, e que está aberta a todos, estão teares manuais onde é possível assistir ao fabrico deste produto, como se fazia antigamente, com uso de lã 100% pura e portuguesa.

«Isto não é difícil, é só uma questão de sintonia e força», conta Mafalda, tecelã. Largou a costura e dedica-se a esta arte local há três anos. Mais coloridas ou neutras, lisas ou com padrões, mais ou menos trabalhadas: aqui fazem-se e vendem-se mantas para todos os gostos. O seu tempo de produção varia, consoante o tamanho, e pode levar um mês a completar-se. A concentração e empenho que exige são provas de uma Serra de Aire que se mantém viva, sempre ligada à tradição.

 

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