São Pedro de Moel e Vieira: roteiro pelos destinos costeiros do povo e da burguesia

Conheça este roteiro por São Pedro de Moel e pela Praia da Vieira. (Fotografia de Maria João Gala/GI)
As mais belas casas de veraneio da costa portuguesa continuam lá, em São Pedro. O melhor arroz de marisco é servido a norte, na Vieira. Viagem aos destinos do povo e da burguesia pela costa do concelho da Marinha Grande, com um desvio ao surpreendente Vale Furado.

“Deixo enfim os asfaltos da cidade/e os céus de mágoa, verdes, em estagnância/ e ao ar livre que sabe a mocidade/encho os meus pulmões d’ar e a alma d’infância”. Na varanda da casa-nau, que foi de Afonso Lopes Vieira, os versos de “Passeio ao sol” – que o poeta ali escreveu, como tanta da sua obra – ecoam por toda a parte. Em cima da praia, a casa está este ano envolta numa aura suplementar de melancolia.

Faltam-lhe os risos das crianças que desde os anos 1940 enchem de vida a colónia balnear, construída num edifício junto à moradia, por vontade expressa do poeta, em testamento. Mas sobra-lhe a energia dos atores Miguel Linares e Carolina Santarino, que neste verão foram Afonso Lopes Vieira e Amélia Rey Colaço, filha de um grande amigo do poeta, e também ela uma das companhias prediletas dele, nas tardes em que falavam de poesia, de teatro, da vida e do mundo, com o mar de São Pedro aos pés. O casal passou o verão em São Pedro, entre o programa cultural da associação Protur, e que levou à CASA-MUSEU AFONSO LOPES VIEIRA visitas encenadas, além de um festival literário e espetáculos de música, poesia, teatro e arquitetura, a maioria no Palco do Vale, junto à praia.

Afonso Lopes Vieira e Catarina Santarino na Casa-Museu Afonso Lopes Vieira. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

“A ideia é conseguir que São Pedro de Moel tenha atividades todo o ano. Merece isso”, diz à Evasões o ator, ainda na pele de Afonso. Carolina passou ali a infância e juventude, na casa da família, e por isso cresce-lhe empenho no lugar, na programação que já desenham para o Natal, por exemplo. A associação de promoção cultural está sediada no posto de turismo, junto a um dos espaços mais emblemáticos de São Pedro de Moel: o café Bambi, aninhado entre pinheiros mansos e um mítico parque infantil, onde brincaram muitas crianças que agora ali guardam os netos.

 

Como se fosse uma concha
Para quem chega, é como se São Pedro fosse um tesouro que se vai revelando à medida que percorremos as ruas e descemos à praia: a beleza das casas, na sua maioria preservadas, algumas assinadas por arquitetos de renome, muitas pertença da burguesia que dominava o país no século passado, outras dos empresários deste tempo. Vista de longe, São Pedro de Moel parece uma concha. De perto, uma vila perfeita de veraneio, que conseguiu passar ao lado de qualquer atentado urbanístico tão em voga nos anos 80 e 90.

A mesma sorte não teve o complexo das piscinas, que agoniza à espera de recuperação. Luís Vasco Pedroso foi o último a tentar mantê-lo vivo, ma rendeu-se aos sinais dos tempos. “Acho que houve sempre um grande respeito pela localidade”, considera ele, que foi proprietário de espaços de diversão como a discoteca Hot Rio ou o Snoobar. Mas os tempos mudaram e os hábitos também. Nem todos, como se percebe numa volta de fim de tarde pelas ruas. Junto à vidraça de uma casa antiga, uma empregada de uniforme prepara-se para servir o jantar. Há buganvílias que alindam os alpendres, num contraste idílico com as vedações escuras das varandas.

 

A frescura d’A Fonte
“Houve muita gente que passou aqui o confinamento”, conta Natália Loureiro, orgulhosamente filha de um pescador vindo da Nazaré e que ali foi banheiro, na segunda metade da vida. Também ela foi nadadora-salvadora na praia de São Pedro de Moel. Conhece os segredos do mar e da pesca, e por amor à terra que também é sua, de coração, um dia tornou-se cozinheira. É a alma do restaurante A FONTE, onde o peixe fresco é rei. Sabe de cor os nomes de quase todos os clientes. “Isto é uma casa de amigos para amigos”, apresenta, enquanto espera pelas amêijoas que, não tarda, estarão no tacho e nos pratos, já à Bulhão Pato. Também recomenda o bacalhau com cebolada e pimentos, a caldeirada ou feijoada de chocos, o arroz de polvo. Ou a simples sardinha assada, tão apetecida em dias de calor. No ano mais difícil da vida do turismo, Natália arregaçou as mangas, como sempre: trabalhou mesmo durante o confinamento, em regime de takeaway. Muitos habituaram-se e continuam a preferir esse sistema, ela agradece em dias de maior afluência, pois que as normas sanitárias a obrigaram a reduzir o número de lugares. É sempre melhor reservar, sabemos. E guardar aquele espaço para a mousse de chocolate que é especialidade da casa.

As noites são calmas, de um sossego revigorante, como pedem os dias de praia ou passeio. Há quem não dispense o pequeno-almoço na PASTELARIA ARCO-ÍRIS, ou pelo menos um suspiro, uma brisa-do-lis, uma bolacha húngara que acompanha o café. Cristina Nobre – a investigadora que é dedicada de corpo e alma à vida e obra de Afonso Lopes Vieira – elege aquele espaço como um dos seus lugares, na terra onde mora há mais de 30 anos. Se já tinha com ela (e com o poeta) uma história de amor, reforçou-a desde há 10 anos, quando um grave acidente de viação a deixou entre a vida e a morte. De modo que se permite a gostos simples como o de ver as ondas rebentarem na praia; a espuma dos dias.

Um passeio pela mata – pelo que dela resta, à volta de São Pedro, – pode ser uma opção para quem gosta de sentir a natureza. Assim como uma visita ao Penedo da Saudade, já que as visitas ao farol estão, por ora, interditas.

 

 

A descoberta do Vale Furado
As duas mãos sobram para contar os quilómetros que separam São Pedro de Moel da praia do Vale Furado. Há quem não resista a espreitar as que lhe antecedem (Água de Madeiros, Polvoeira e Paredes de Vitória), num registo de suspense em crescendo. Uma vez chegado, a paisagem é de cortar a respiração. E nos últimos anos foi enriquecida pelo RESTAURANTE MAD, criado por Slavo Husar, que deixou a Eslováquia em 2010 para trabalhar na região.

A vida de Slavo deu muitas voltas, tantas quantas gosta de dar à cozinha de fusão com produtos tradicionais. “Não sei dizer qual é a nossa especialidade, sinceramente. Mas sei que as pessoas gostam e voltam. Além disso há cada vez mais gente que vem de longe para experimentar alguns petiscos de que os outros lhe falam”, conta o cozinheiro, que inventou cada uma das receitas que ali se servem na louça de grés, sob as mesas de madeira clara.

A viagem começa com manteiga picante, queijo e salada de grão, a abrir caminho para as entradas que são uma perdição: lingueirão à Bulhão Pato ou camarão-two-spicy-chefs, envolto em leite de coco e curcuma, num molho enriquecido com citrinos. Para prato principal escolhemos um bacalhau com broa e espargos, servido com aquela que é uma especialialidade da casa: flores comestíveis. Slavo herdou o gosto da floricultura dos tempos de menino, quando o pai trabalhava nessa área, na antiga Checoslováquia. As flores decoram todos os pratos, da entrada à sobremesa. E nessa reta final da experiência, é preciso poder de decisão. A par das opções vegan, há um gelado caseiro de caramelo que podia concorrer a qualquer prémio de gastronomia.

 

Quem compra sardinha, fresquinha, a saltar?
Uma volta pelas praias dos concelhos de Alcobaça (Vale Furado) e Marinha Grande (São Pedro de Moel) pode tornar-se uma experiência única se terminar na pitoresca praia da Vieira, num exercício de rutura com as elites e aproximação ao que há de mais genuíno no mar: a arte xávega. Ali os barcos ainda vão e vêm de manhã à noite, num corropio de redes lançadas e recolhidas, com o peixe mais fresco. Para mais, há uma pequena lota junto à praia, onde os pescadores vendem diretamente. Agora que agosto se foi, já não haverá filas à porta dos restaurantes, e a criançada pode espreitar a volta da pesca de olhos arregalados. É sempre um espetáculo único.

João Ramusga cresceu ali, no areal, a ouvir as histórias trágicas dos pescadores, os relatos de pobreza que obrigavam homens e mulheres a procurar sustento fora dali, no inverno. À mesa da MARISQUEIRA LISMAR “O LEDO”, que o pai criou em 1979, desfia também a história do avô, Alfredo “Palaúrde”, que nos anos 40 abriu por ali a Casa Miramar, primeiro restaurante da praia. Era onde os veraneantes procuravam a caldeirada ou as enguias fritas.
Há uma dúzia de anos, o pai entregou-lhe (tal como à irmã, Liliana), a responsabilidade deste legado. João já servia às mesas desde os 13 anos, mas quando assumiu o leme do Lismar, aprimorou-se. Sabe que, embora vizinhas, as praias de São Pedro e Vieira são como a noite e o dia. E por isso é sem espanto que acolhe muitos do que, estando na primeira, procuram a segunda para saborear o tal arroz de marisco, eleito uma das sete maravilhas da gastronomia portuguesa.

João e a sua equipa vivem da fama, mas também do proveito. Esmera-se no essencial, como o camarão cozido, mas também nos detalhes: o arroz é confecionado no tacho de barro em que é servido à mesa. Da ementa só constam três pratos de carne, porque ali quem manda é o mar, e o que ele dá. Como se em cada campanha se ouvissem as vozes das peixeiras da Vieira que cantam “quem compra sardinha, fresquinha a saltar/ela é da nossa praia, saiu agora mesmo do mar”.

Joaquim Ramusga com as suas criações. (Fotografia de Maria João Gala /GI)

 

Os barcos de Joaquim Ramusga
Numa terra em que todos se conhecem (e a maioria é familiar), Joaquim Ramusga descobriu já no inverno da vida a arte de esculpir em madeira pequenos barcos, à imagem e semelhança daqueles onde navegou, no Atlântico, quando era rapaz novo. Já depois dos 70 empenhou-se no artesanato. Vende-os na loja da mulher, Carminda, entre utilidades diversas e recordações da praia. Também ele fez parte dos grupos de avieiros que, na mudança de estação, pescavam no rio Tejo.

“Um dia experimentei também fazer um desses, típico de Escaroupim, e lá consegui”. Nem o toldo lhe escapa, nas miniaturas, por poucas que sejam as saudades de quando ali dormia, em pleno Tejo, para se abrigar da chuva e do frio. A mesma costa, o mesmo mar. Ou como o verão será sempre o mesmo entre a Vieira e São Pedro de Moel. O que muda é a perspetiva, dependendo da posição do sol, que – já se sabe – nasce para todos.

 

Old Beach, um bar de praia todo o ano

Há um ano, quando um incêndio destruiu quase por completo o mítico Old Beach, na praia velha de São Pedro de Moel, foi como se ardessem as memórias de duas ou três gerações. Luís Vasco Pedroso fê-lo renascer das cinzas e em pouco tempo o velho bar de madeira – que até no inverno mantém as portas abertas – estava pronto a receber clientes e amigos. Há mesas e cadeiras no areal, para lá da esplanada, permitindo saborear a praia de copo na mão. Ali, onde antes de se sumir nas areias e nunca conseguir desaguar, o rio faz as delícias dos mais novos. Fundado há 22 anos por António Santos, o Old Beach está apenas há meia dúzia nas mãos de Luís Vasco. Enquanto houver verão, haverá bebidas frescas e saladas apetitosas, como a de camarão e salmão. E música a condizer.

 

Mar e Sol, quarto com vista sobre a praia

Bruno procura todos os dias honrar a memória do avô Fernando, que saiu de Vila Nova de Foz Côa muito novo e se tornou motorista particular do dono de uma fábrica de bolachas, também proprietário de uma casa em São Pedro de Moel – que quis reconhecer a lealdade do empregado doando-lhe o hotel que ajudou a fundar.

O edifício integra 57 quartos, contando com cinco suítes (duas superiores e três juniores) e registou este ano uma plena ocupação, mesmo em tempo de pandemia. No verão, é o mercado nacional o que mais procura o hotel. Já no inverno altera-se esse panorama: a proximidade das indústrias da Marinha Grande traz o mercado externo à tona.

Neste verão o terraço não foi palco das habituais festas, que se tornaram cartão de visita em São Pedro. O mesmo aconteceu a alguns dos equipamentos, à conta das normas sanitárias. Mas a vista mantém-se incólume, soberba, para o mar e para a praia.

 

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