São Jorge: Entre o mar e a montanha, no coração dos Açores

A ilha das falésias e das fajãs, no coração dos Açores, é talvez o vértice mais verde e tranquilo do triângulo central. A “Evasões” foi conhecer os trilhos de São Jorge à boleia da primeira edição do Azores Trails Fest, por caminhos que mostram a resiliência das suas gentes, as tradições e a beleza de um território forjado pelo fogo.

Estreita e alongada, vista do céu, a ilha de São Jorge lembra um dragão adormecido sobre o mar. Tem uma cordilheira vulcânica a fazer de espinha dorsal a uma costa recortada por falésias abruptas e lençóis de terra adentrados no Atlântico. As fajãs, esses terrenos planos entalados entre a montanha e o mar, são a razão pela qual a ilha tem alguns dos mais belos percursos pedestres do arquipélago. São rotas ancestrais, abertas a força de braços montanha acima, que durante séculos constituíram o único acesso a essas zonas da ilha, além da via marítima.

“São Jorge tem os trilhos que tem por necessidade, faz parte da alma das fajãs”, diz Dina Nunes, guia turística natural da Fajã dos Vimes, na costa sul da ilha. Havemos de lá passar para tomar um café produzido pelos seus pais e conhecer o artesanato local, mas antes enchemos o peito e a vista no cimo da Serra do Topo, varrida a colinas verdes cobertas pela bruma da manhã. Grande parte dos trilhos da ilha têm início aqui. São mais de 100 quilómetros distribuídos por nove percursos, entre pequenas e grandes rotas, que cruzam a ilha de uma ponta a outra. E um dos mais famosos, pelo destino e pelos encantos que se encontram no caminho, é o que leva à fajã da Caldeira de Santo Cristo (PR01). A “Evasões” percorreu-o à pretexto do primeiro Azores Trails Fest, um festival de trilhos que junta a natureza à arte, cultura e gastronomia local. A iniciativa terá caráter anual e deverá estender-se às restantes ilhas açorianas.

 

Inicia-se a caminhada a uns 700 metros de altitude e à medida que se vai descendo, através de pastagens íngremes e túneis de vegetação exuberante, a atmosfera torna-se mais densa, sente-se o calor e a humidade que dá vigor ao tapete verde da ilha de São Jorge.

Em cada curva, belos quadros emoldurados pelo arvoredo, como a Cascata Pequena, abrem-se aos olhos dos caminhantes, que devem alternar entre manter o olhar no chão, atento às pedras irregulares e escorregadias, e parar em pés firmes para admirar o cenário, ouvir um chocalho ao longe ou ver esvoaçar alguma estrelinha. Os trilhos de São Jorge exigem alguma destreza e muita atenção. São lembretes do estoicismo dos habitantes, que palmilhavam regularmente aqueles caminhos, muitas vezes carregados de mercadorias. “O meu avô percorria quilómetros para levar milho e trazer peixe seco”, recorda Dina.

Fajã da Caldeira de Santo Cristo (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

Ao chegar à fajã, em tempos uma das mais populosas de São Jorge, paira um sossego balsâmico. Depois do grande sismo de 1980, que obrigou a maioria da população a mover-se para outros locais da ilha, as primeiras incursões do turismo transformaram este lugar remoto num santuário para os amantes dos desportos aquáticos, nomeadamente do bodyboard e surf. Outro dos atrativos deste lugar, se não o maior, é a lagoa de água salobra e sujeita às marés, onde se reproduzem as famosas amêijoas de São Jorge. Nas suas águas tranquilas, há quem aproveite para pescar, fazer stand up paddle, ou deixar-se contagiar pela serenidade da lagoa, que espelha as montanhas altas e verdes.

Lago da Caldeira de Santo Cristo (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

O percurso de quase dez quilómetros termina na fajã vizinha, a dos Cubres, que liga à Caldeira de Santo Cristo por um caminho em terra batida, cujo trânsito consiste essencialmente em motos-quatro que servem os fajanenses na deslocação entre as duas localidades, o único quadriciclo autorizado a chegar àquele pequeno paraíso.

 

Uma caminhada por um café

De mais fácil acesso, mas com um trilho igualmente viçoso para calcorrear (PR02), ladeado por hortênsias, matas de incenso e vegetação endémica, a Fajã dos Vimes é outro ponto de visita incontornável da ilha, por dois motivos em particular: as tradicionais colchas de ponto alto, e uma pequena plantação de café, “única na Europa”. “Antigamente havia a tradição de as senhoras do artesanato oferecerem café aos clientes que vinham comprar as colchas. Entretanto, isto ficou reduzido à minha mãe e à minha madrinha, e elas continuaram esta tradição”, conta Dina Nunes, uma orgulhosa fajanense. Nasceu e cresceu ali. Foi para o continente estudar desporto de natureza e turismo ativo e logo depois regressou a casa, onde fundou a Discover Experience. Juntamente com o marido Jorge, faz percursos pedestres guiados e atividades como canyoning, coasteering e caiaque. E nos tempos livres ainda dá uma mãozinha no Café Nunes, o estabelecimento dos pais e a plantação com 700 pés de cafezeiros no quintal lá de casa.

PR02 – Serra do Topo/Fajã dos Vimes (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

Já existiam algumas plantas antes do pai Manuel construir a casa, e com os anos foram introduzindo mais. No final da década de 1990, essa pequena plantação familiar foi parar a alguns guias turísticos europeus como sendo única na Europa e começaram a chegar visitantes à pequena fajã propositadamente para provar o café ali produzido, da variedade arábica. Toda a transformação é manual e feita pela família, desde a colheita até à torra. E toda a produção é para consumo local, ou venda em pequenos sacos de lembrança.

Café Nunes (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

Acredita-se que a planta terá chegado à ilha no final do século XVIII, vinda do Brasil, e foi introduzida na agricultura de subsistência das famílias. “Nós estamos contra a natureza desta espécie. O café arábica gosta de altitude, e nós temos café junto ao mar”, comenta Dina. A explicação para o sucesso do café nesta ilha açoriana está no microclima das fajãs de São Jorge. “As nossas temperaturas médias anuais, no inverno rondam os 12 graus, e no verão 25, sempre com a humidade acima dos 79%. É este o clima perfeito.”

 

No piso superior, antes ou depois de saborear uma chávena desse café especial, vale a pena visitar a oficina da Casa de Artesanato Nunes. Ali, as artesãs Alzira e Carminda (mãe e madrinha de Dina) dão continuidade à arte das colchas de ponto alto, nos teares centenários recuperados por Manuel.

 

O queijo, as sopas e outros encantos jorgenses

De todas as festas açorianas, as maiores e mais vincadas na tradição popular são as do Espírito Santo, símbolo máximo de convívio e partilha, que juntam a comunidade ao redor de uma mesa farta. “É uma tradição que faz parte da identidade açoriana. O Espírito Santo faz parte de nós”, afirma a jorgense Elisabete Alves, técnica superior da Direção Regional de Turismo.

“As festas do Espírito Santo são inspiradas, pensa-se, na Rainha Santa Isabel e no milagre dos pães”, explica. “São festas comunitárias, do povo e para o povo, que se iniciam no primeiro domingo após a Páscoa e têm a duração de oito semanas, sendo que os dois últimos domingos são os maiores.”

Nas ilhas do triângulo central (São Jorge, Pico e Faial) são vividas com particular intensidade. Quem tem promessas ao Espírito Santo fica responsável por dar as festas, mas toda a freguesia ajuda. Durante a semana há todo um ritual de preparação para o dia maior das celebrações. No domingo, depois do cortejo acompanhado pela banda filarmónica, da missa e da coroação, são servidas as Sopas do Espírito Santo a todos quantos se queiram juntar à festa, visitantes de passagem incluídos.

Sopas do Espírito Santo (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

Consistem em carne de vaca cozida num caldo com especiarias, que variam em cada localidade – as sopas da Fajã dos Vimes, que a “Evasões” provou, confecionadas pela Sociedade União Popular da Ribeira Seca, levam canela e hortelã -, e fatias de pão ensopado nesse caldo, servido com couves e outros legumes. Para sobremesa há sempre arroz doce, “comido com a faca”, realça Elisabete.

As sopas são servidas em vários restaurantes da ilha ao longo de todo o ano, mas predomina a opinião de que “no Espírito Santo têm outro sabor”. Talvez seja o convívio o ingrediente essencial.

Falando-se de sabores de São Jorge, não se pode esquecer aquele que é talvez o seu maior estandarte, o queijo. A sua história está associada aos primeiros colonos da Flandres, que ali chegaram há 500 anos. Hoje, a produção do queijo da ilha está distribuída por três grandes unidades industriais, e algumas produções artesanais, como a Queijaria Canada, fundada por Manuel Silveira em 2001. Era um velho sonho de família, que começou com o avô de Manuel, dirigente da antiga cooperativa de Santo Amaro e dos Rosais. No outrora secadouro da cooperativa repousam agora, durante dois meses, os queijos Canada, de travo picante mas delicado.

Queijaria Canada (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

É com o estômago aconchegado por estes e outros ícones da gastronomia local que se deve partir à descoberta de mais encantos de São Jorge. Seja o cancioneiro melancólico da ilha, embalado pela bonita viola da terra, os muitos miradouros que se abrem em varandas nas encostas – o mais recente é o Miradouro do Caminhante, na Serra do Topo – , o casario de pedra basáltica e os moinhos vermelho fogo.

Entre um mergulho na Piscina Natural da Preguiça e outro nas Poças dos Frades, fica um passeio pela marginal de Velas, a apreciar a silhueta do Pico, com o seu cume habitualmente rodeado por um anel de nevoeiro. São Jorge e Pico são eternos namorados, separados por um canal de 15 quilómetros. Olham-se incansavelmente o dia todo, mas o quadro fica especialmente bonito com os tons rosa do final da tarde.

Ainda no concelho de Velas, tem-se outra vista panorâmica digna de nota no restaurante Fornos de Lava, construído sobre uma eira, em pedra, madeira e vidro. À mesa, destaca-se a vitela grelhada e a cataplana de peixe ou marisco, em que não faltam as lapas e as amêijoas da Caldeira de Santo Cristo. No copo, vão bem os vinhos da ilha do Pico, que também ganha especial encanto vista do terraço, sob o céu estrelado.

Se tanto olhar o Pico aguçar a vontade de fazer uma visita, há todos os dias um barco de carreira que sai do porto de Velas rumo às outras ilhas do triângulo, onde se encontram ainda mais caminhos para trilhar. Eis o pretexto para um regresso ao coração dos Açores.

 

Um ícone da arquitetura religiosa
A fachada simples da Igreja de Santa Bárbara, erguida durante os séculos XVII e XVIII na freguesia da Urzelina, em Manadas, não deixa adivinhar a riqueza artística do seu interior. É um dos mais belos edifícios religiosos dos Açores e dos maiores testemunhos do Barroco no arquipélago. Destaque para os retábulos com cenas bíblicas que revestem as paredes, a talha dourada da capela-mor e os painéis de azulejos que narram episódios da vida de Santa Bárbara. O teto de cedro faz lembrar o casco de um navio, e tem pintadas ao centro as imagens de São Jorge, o Espírito Santo e Santa Bárbara na sua torre.

Igreja de Santa Bárbara (Fotografia: Adelino Meireles/GI)

 

Conhecer a história das fajãs
De visita ao Centro de Interpretação da Caldeira de Santo Cristo, fica-se a conhecer a história geológica, biológica e humana da ilha. E ainda as características das fajãs de São Jorge, uma das quatro Reservas da Biosfera nos Açores, que podem ter origem detrítica (resultado do desabamento de terras das arribas) ou lávica (devido ao avanço de escoadas sobre o mar). A exposição aborda também a fauna e a flora local, em particular a Paisagem Protegida da Lagoa da Caldeira de Santo Cristo, onde há mais de 100 anos terá sido introduzida, não se sabe em que circunstâncias, uma espécie de amêijoa, de tamanho generoso, que não se encontra em mais nenhum lugar do arquipélago.

 

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.



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